Sistema penitenciário e lei de drogas; COVID-19 como pena de morte, caso Lucas Morais

Por João Pedro de Oliveira Lopes

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  1. Introdução

No mês de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou estado emergencial da pandemia do novo vírus da COVID-19. Com um aumento exponencial no número de casos, medidas preventivas tiveram de ser adotadas para minimizar a contaminação e o número de óbitos. Em meio a tamanho problema, é de se imaginar que outras crises já existentes viessem a ser amplificadas e que, para essas, fossem direcionados esforços do Estado para adoção de medidas especiais que visassem conter os efeitos catastróficos da pandemia. Esperava-se, assim, especial atenção dos governantes à população privada de liberdade, à saúde e integridade física dessas pessoas, que, muitas vezes, já vivem em condições desumanas que foram intensificadas nesse ano absurdo.

A par das políticas implementadas pelo governo brasileiro voltadas ao sistema carcerário com o intuito de prevenir a contaminação dos detentos dentre as quais se destacam a proibição de visitas externas, salvo em casos de urgência, e o suposto contato com cada gestor de saúde responsável pelas unidades prisionais para atender a demandas específicas de cada presídio [1], o grande problema é que a crise do sistema penitenciário já era uma crise sanitária mesmo antes da COVID-19. Com uma população de 678.506 e apenas 446.738 vagas [2], é comum encontrarmos celas com capacidade para 10 pessoas, comportando 15 ou 16 detentos, em condições degradantes (MOURA, 2017).

Apesar de muito importante, o tema supracitado não é tratado com o destaque e cuidado que merece, por afetar somente uma parcela da população invisibilizada, as chamadas maiorias minorizadas que, desde os primórdios da legislação penal brasileira, seguem perseguidas e oprimidas. Entendemos que o ponto principal que fundamenta todo o sistema punitivo, segregacionista brasileiro, é a criminalização do uso e do comércio/produção de drogas e que esses momentos de crise sanitária devem ser utilizados para que sejam revistos posicionamentos e práticas históricas.

Tal explicação se faz importante porque, a partir dela, podem-se perceber os fundamentos e objetivos da polícia e do judiciário e as consequências de sua atuação, como o absurdo caso de Lucas Morais da Trindade, jovem negro, de 28 anos, morto por COVID-19, em julho de 2020, quando cumpria pena, desde novembro de 2018, no Presídio de Manhumirim, por tráfico de drogas.

2. Alusão histórica

Da década de 1530 até o dia 13 de maio de 1888, a escravidão foi o maior meio de produção utilizado pela economia brasileira. Segundo o banco de dados The Transatlantic Slave Trade Database (SLAVEVOYAGES, 2009), estima-se que quase 3,52 milhões de escravos foram desembarcados em terras nacionais. O Brasil, que sempre teve sua economia pautada na produção, exploração e exportação, foi um refúgio para a elite escravista da metrópole, já que as terras eram maiores e propícias para a plantação. Com o passar dos anos, o pensamento da supremacia branca se enraizou na sociedade de forma tão dogmática que o país foi o último a abolir a escravidão (no Ocidente) e de maneira muito superficial, sem integrar aqueles escravos na sociedade originando uma sociedade composta por uma maioria populacional marginalizada.

Foi só em 1807 que o Brasil ganhou devida importância no cenário mundial, pois nesse ano a coroa portuguesa foge para a colônia junto com outros 15 mil portugueses, em sua maioria, integrantes da elite. Ao chegarem, se deparam com uma nova realidade, uma população majoritariamente escravizada, sem qualquer regulamentação que lhes garantissem a segurança que usufruíam em Portugal. Com isso, em 1809, foi criada a Guarda Real de Polícia, com o objetivo de reprimir a cultura africana no Brasil, principalmente, pessoas que portavam cachaça e maconha (BARROS; PERES, 2011). Ademais, não estava submetida a qualquer lei já que as leis penais brasileiras só entraram em vigor em 1830, estando, portanto, livres para proteger os valores da elite. Em seu livro, “Conflito e segurança: Entre pombos e falcões”, o autor João Ricardo W Dornelles (2003, p. 76) afirma:

A polícia brasileira, portanto, foi historicamente uma instituição nascida e desenvolvida com o bem definido objetivo de garantir os interesses […] das classes privilegiadas. Uma polícia que sempre teve ‘carta branca’ para cometer atrocidades, sempre teve complacência das elites dominantes para usar todo o rigor e a força, mesmo a violência e a ilegalidade, para garantir os interesses dos seus senhores […]. Enfim, uma polícia que não tem em sua gênese a finalidade de garantir um Estado de Direito Democrático […].

Desde então, foram promulgadas diversas leis sobre a temática das drogas, sempre com um cunho racista e deixando brechas para a interpretação e, consequentemente, margem para o abuso do poder pelos agentes estatais e eliminação da população marginalizada. Podem-se citar, por exemplo, a Lei de 16/12/1830, o Primeiro Código Penal brasileiro, que, não coincidentemente, possui diversos artigos que mais tarde viriam a se repetir na história, quer agravando a pena pelo critério de localidade do crime (arts. 16, I do Código Criminal do Império do Brasil e artigo 28, III, § 2° da atual Lei de Drogas, a Lei 11.343/2006), quer por reincidência no crime (arts. 16, III do Código Criminal do Império do Brasil e artigo 28 § 2° da atual Lei de Drogas.).

A partir da promulgação da República, já com a escravidão proibida, a influência de um pensamento determinista, defendido por psiquiatras lombrosianos, prevaleceu no pensamento criminológico brasileiro, culminando no Código Penal de 1890. Com isso, ideias de que a cor da pele e a marginalização da cultura de origem africana fossem levadas em consideração na hora de autuar supostos criminosos e proferir sentenças, tinham o seu fundamento legal. Assim, criminalizaram-se as rodas de samba e de capoeira, como meio de excluir ainda mais a, já marginalizada, maioria populacional negra.

Além disso, naquele mesmo ano de 1890, foi implementada a Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação, com o principal objetivo de proibir e fiscalizar o uso da maconha em rituais religiosos de matriz africana, o que reforça que as instituições brasileiras, desde seus primórdios, são voltadas para excluir uma parte da população que nunca foi, de fato, introduzida na sociedade. O mesmo sistema de segregação foi repetido na Lei 11.343/06, atual Lei de Drogas, que ainda é a principal responsável pelo encarceramento em massa que acontece no Brasil, acarretando o genocídio da população negra. Atualmente, no Brasil, que possui a terceira maior população carcerária do mundo, 57,76% das mulheres e 31,23% dos homens, ingressaram no sistema carcerário em razão do tráfico de drogas.

É o que Achille Mbembe (2019) chama de necropolítica: o poder do Estado de desenvolver políticas públicas com “o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas” pré-determinadas. Para isso, nosso sistema carcerário tem servido muito bem [3]: extermínio do povo negro, pobre e periférico, ainda mais agravado pela pandemia do COVID-19.

3. Da análise do caso Lucas Morais da Trindade (TJMG 1.0242.18.003457–9/001)

Em 28 de julho de 2020, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais deu provimento à apelação apresentada pelo Ministério Público, nos autos do processo 1.0242.18.003457–9/001, mantendo a tipificação da conduta de Lucas Morais de Trindade como tráfico de drogas e reconhecendo a existência de situação agravante da pena, sob o fundamento de que “a prática visou atingir criança ou adolescente”.

Lucas fora preso, no dia 27 de novembro de 2018, enquanto dormia no sofá de sua casa, portando apenas 1 pacote de maconha prensada no bolso de sua bermuda e R$ 184,00, além de diversos saquinhos de chup-chup, diga-se de passagem, vazios, como se vê do inteiro teor do acórdão ora referido.

Ainda que se tenham por verdadeiros os fatos da denúncia: de que Lucas havia vendido uma buxa de maconha a dois jovens de 17 anos, não há nenhuma alegação de comportamento violento a justificar a segregação de Lucas do convívio social.

O jovem foi atuado com base no art. 33 e 40, VI, da Lei de Drogas, que tratam do tráfico e geram muita controvérsia na jurisdição brasileira pela incerteza trazida na classificação do traficante e também do usuário, que é exposta no art. 28 da mesma lei. A abstração dos termos legais utilizados para definir (ou melhor, indefinir) usuário e traficante nos remetem à evolução legal histórica acima abordada.

Segundo a autora Juliana Borges (2018, p. 19) em seu livro “O que é? Encarceramento em massa”,

A Lei 11.343 de 2006, chamada Lei de Drogas, é um dos principais argumentos no qual se baseia legitima o superencarceramento. Em 1990, a população prisional tinha pouco mais de 90 mil pessoas. Na análise histórica, chegando aos mais de 726 mil, hoje, temos um aumento em 707% de pessoas encarceradas. O crescimento abrupto acontece, exatamente, após 2006 e a aprovação da Lei de Drogas.

Todo aquele que se quer excluir pode ser enquadrado como “traficante” e todo aquele que se quer preservar, pode ser enquadrado como usuário, havendo, portanto, ampla margem para os usos e abusos do poder.

Não há dúvidas da cor da pele de Lucas ou de seu CEP: era negro e periférico. Foi preso, em flagrante, por tráfico de 1 bucha de maconha, enquanto dormia no sofá de sua casa.

Após mais de dois anos preso, testou positivo para corona vírus e faleceu dentro do sistema penitenciário, no presídio de Manhumirim, em Minas Gerais no dia 4 de julho de 2020, sendo mais uma vítima do sistema judicial que segue aplicando penas de morte à população marginalizada, utilizando sua mais aprimorada ferramenta, a “Guerra as Drogas”.

Além do caso de Lucas, segundo os números do DEPEN outros 100 presos já vieram a falecer devido à COVID-19 e cerca de 18.500 casos foram notificados até agosto desse ano (BRASIL, 2020). Portanto o Corona-vírus serviu como ferramenta dessa necropolítica, atuando como uma verdadeira pena de morte em um Estado que não aceita tal penalidade. Em estudo realizado pela FGV-SP, concluiu-se que 88% dos Habeas Corpus requeridos em meio a esta pandemia tão seria foram negados e que apenas 10 foram concedidos quando se tratando de tráfico de drogas (VASCONCELOS et al., 2020).

4. Conclusão

Diante do exposto, se faz cada vez mais necessária e urgente a revogação da Lei 11.343/06, com um amplo debate sobre a descriminalização das drogas, reformulação das polícias, implantação de políticas de saúde pública, reinserção social e políticas de reparação integral da população historicamente marginalizada. Essa luta é essencial a fim de salvarem-se vidas e de se evitarem que outros indivíduos venham sofrer com as injustiças sociais que vem acontecendo.

Notas

[1] O governo oferece em seu site (https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/acoes-contra-pandemia/prevencao-ao-covid-19-no-sistema-prisional/prevencao-ao-covid-19-no-sistema-prisional-informacoes-complementares) informações complementares sobre a prevenção da COVID-19 nos presídios.

[2] Dados retirados do SISDEPEN, disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMjU3Y2RjNjctODQzMi00YTE4LWEwMDAtZDIzNWQ5YmIzMzk1IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9

[3] Levantamento feito pelo DEPEN estima que 1.424 pessoas perderam a vida dentro do sistema prisional apenas no ano de 2018.

Referências Bibliográficas

BARROS, André; PERES, Marta. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. Periferia, [S.l.], v. 3, n. 2, jul./dez., 2011.

BORGES, J. O que é encarceramento em massa?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018

BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. SISDEPEN: período de janeiro a junho de 2020. Brasília: Departamento Penitenciário Nacional, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen. Acesso em: 24 nov. 2020.

DOMENICI, Thiago; BARCELOS, Iuri. Negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas em São Paulo. Publica, [S.l.], 06 mai. 2019. Disponível em: https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/. Acesso em: 24 nov. 2020.

DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e segurança (entre pombos e falcões). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003.

MBEMBE, Achille. Necropolitics. Durham/London: Duke University Press, 2019.

MOURA, Vinícius Pinto; GUERRA, Sidney. As condições degradantes dos detentos nos presídios do Brasil e o RE 580.252: uma análise à luz dos direitos humanos. Revista de Criminologias e Politicas Criminais, v. 3, n. 1, p. 60–77, 2017.

SLAVEVOYAGES. Intra-American Slave Trade — Database. Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database, [S.l.], 2009. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/american/database. Acesso em: 24 nov. 2020.

VASCONCELOS, Natalia Pires de; MACHADO, Maíra Rocha; WANG, Daniel Wei Liang. COVID-19 nas prisões: um estudo das decisões em habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo. Revista de Administração Pública, [online], v. 54, n. 5, pp. 1472–1485, nov. 2020.

Sobre o autor

João Pedro de Oliveira Lopes é estudante do 3º período de Direito, PUC-RIO.

O blog da Revista Direito, Estado e Sociedade publica textos de autores convidados. As opiniões expressas nesses posts não representam, necessariamente, a opinião do periódico e de sua equipe editorial.

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