REGIME SEMIABERTO EM TEMPOS DE COVID-19: REFLEXOS DA OMISSÃO DO INVESTIMENTO PÚBLICO

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Por Ione Campêlo da Silva e Pedro Germano dos Anjos

Créditos de Imagem: Imagem de Free-Photos por Pixabay

INTRODUÇÃO

A origem e estabelecimento da pena privativa de liberdade são marcados por instabilidades históricas e a finalidade desse instrumento repressivo se perdeu ao longo do processo de materialização no Brasil. Atualmente, há um sério problema de divergência entre o que está proposto na legislação e o que efetivamente é realizado na prática.

O regime semiaberto do sistema de cumprimento de pena brasileiro possui a peculiaridade de possibilitar uma autossustentabilidade através do trabalho executado pelos presos. A colônia agrícola ou industrial é um estabelecimento penal que pode promover uma reinserção dos condenados na sociedade através do labor interno e externo, além da capacitação por meio de cursos profissionalizantes como aduz o artigo 91 da Lei de Execução Penal e os parágrafos §1º e § 2º do artigo 35 do Código Penal brasileiro.

A problemática gira em torno da inexpressiva quantidade de estabelecimentos como esse e sua operabilidade com quase o dobro da capacidade (MJSP, 2019). Além disso, a produção científica sobre esse regime e suas características ainda é pouco significativa no Brasil. Assim como as pesquisas na maior parte das vezes se dirigem ao regime fechado, o investimento público também segue o mesmo destino. Dessa forma, as penitenciárias superlotam e não há possibilidade de gerar recursos, já que essa não é a finalidade do regime fechado.

Somado à isso, no atual cenário crítico que a população mundial vive devido à pandemia do novo coronavírus, no Brasil, é evidente o colapso do sistema prisional, quanto mais após a declaração do “estado de coisas inconstitucional” (STF, 2015), gerando dúvidas a respeito da constitucionalidade e proporcionalidade das medidas. As autoridades se perdem em medidas que atenuem a precariedade precedente à Covid-19, liberando em massa (em prisão domiciliar ou não) os condenados para que não sofram o efeito colateral de extermínio provocado pela ineficiência desses estabelecimentos.

DESENVOLVIMENTO

No sistema penal brasileiro, o Código Penal regula a prisão proveniente de condenação, estabelecendo suas espécies, formas de cumprimento e regimes de abrigo do condenado. Assim, no seu art. 33, § 2º adota-se o sistema de cumprimento de pena progressivo. Dessa forma, o condenado cumprirá a pena no regime inicialmente determinado pela sentença transitada em julgado e poderá ir para regime menos rigoroso conforme alguns critérios.

O regime semiaberto é considerado entre os doutrinadores como um meio termo entre o regime fechado e regime aberto, tendo em vista que não há a vigilância máxima e nem a mínima. Nada mais é do que um ponto de equilíbrio entre eles (SILVA, 2013, p. 25).

O diploma supracitado em seu artigo 35, preceitua as formas e os estabelecimentos em que deverá ser cumprido o regime semiaberto. O legislador trouxe regras que possibilitam o trabalho interno nos estabelecimentos penais e a admissão de trabalho externo, bem como a frequência em cursos supletivos profissionalizantes (BRASIL, 1940).

A Lei de Execução Penal (LEP) estabelece em seu art. 91 que a Colônia Agrícola, Industrial ou Similar destina-se ao cumprimento da pena em regime semiaberto (BRASIL, 1984). A colônia penal é um estabelecimento de segurança média “onde já não existem muralhas e guardas armados, de modo que a permanência dos presos se dá, em grande parte, por sua própria disciplina e senso de responsabilidade.” (NUCCI, 2018, p. 140). É considerada a alternativa mais eficiente para a ressocialização dos condenados por oferecer trabalho e cursos profissionalizantes. Porém, a superlotação desses estabelecimentos impedem que eles alcancem a sua finalidade.

No tocante à realidade estatística, segundo o relatório analítico nacional produzido pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), a partir de informações sobre o período de julho a dezembro de 2019, a quantidade de presos no regime semiaberto entre homens e mulheres era de 133.408 pessoas. Sobre a quantidade de vagas disponíveis nesse regime, o relatório aponta que nesse período só haviam 73.320 vagas no total. Essas vagas estão distribuídas em 97 estabelecimentos destinados ao cumprimento de pena em regime semiaberto em todo o Brasil.

Como é possível observar, há vagas somente para pouco mais da metade da população carcerária desse regime, o que representa uma evidente superlotação. Esse panorama permite concluir que o regime semiaberto não atende à finalidade de ressocialização e progressão de pena previsto na legislação.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020, declarou que o surto do novo coronavírus constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) — o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional e em 11 de março de 2020, declarou publicamente a situação de pandemia no mundo em relação ao vírus. Até o momento, não houve produção de vacina nem tratamento específico e diversos órgãos no Brasil adotaram medidas de prevenção e controle de disseminação desse vírus altamente contagioso.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em março de 2020 publicou a Recomendação nº. 62, a qual sugere medidas preventivas à propagação do novo coronavírus, Covid-19, no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. Considerou que a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde coletiva e que há uma necessidade de estabelecer procedimentos e regras para fins de prevenção à infecção e à propagação do novo coronavírus particularmente em espaços de confinamento, já que uma contaminação em grande escala poderia sobrecarregar o sistema público de saúde.

Assim, levando em conta o alto índice de transmissibilidade e o agravamento do risco de contágio nos estabelecimentos prisionais, além da insalubridade desses locais desprovidos de condições mínimas de higiene (STF, 2015), editou uma série de medidas para serem adotadas em todo o território nacional.

Em virtude disso, o Judiciário se mobilizou para tomar medidas de prevenção e proteção da saúde coletiva. Na Região Norte do país, foi determinada a suspensão do trabalho externo no regime semiaberto, não sendo permitida a saída sem autorização, salvo para atendimento médico urgente e para prestar serviços essenciais (TJAC, 2020). No Amapá, as saídas temporárias passaram a ter monitoração eletrônica, com prazo de apresentação estendido (TJAP, 2020).

No Nordeste, na Bahia foi concedida progressão antecipada àqueles que tivessem direito à mesma nos próximos 12 meses, que possuíssem trabalho externo, além de prisão domiciliar a quem cumpre regime semiaberto e esteja em grupos de risco. No Piauí, foi concedida prisão domiciliar a 600 pessoas que cumpriam pena no regime semiaberto. No Ceará, presos que tiveram saída temporária antes de 18 de março passaram à prisão domiciliar sob monitoramento eletrônico por 90 dias, sem a necessidade de apresentação em juízo (CNJ, 2020).

Na região Centro-Oeste, no Estado do Tocantins houve a suspensão das atividades da Unidade Prisional do Regime Semiaberto de Palmas e a consequente liberação das mulheres que lá se encontravam cumprindo pena. (CNJ, 2020). Já em Brasília, foi determinada a suspensão do trabalho externo dos detentos do regime semiaberto e foram adotadas formas de compensação como banho de sol diário com duração superior a duas horas, acesso à televisão e à leitura, além de acesso às demais atividades de cunho cultural que possam minimizar os efeitos do isolamento social (MPDFT, 2020).

Na região Sudeste, no Rio de Janeiro foi autorizada a saída de todos os presos em regime semiaberto e que possuem trabalho externo à unidade prisional, por 30 dias. Outra decisão foi liberar as pessoas do regime semiaberto com autorização para visitar a família, que devem permanecer em suas residências entre 22h e 6h, e nos finais de semana (CNJ, 2020). Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o governo de Minas Gerais elaboraram portaria conjunta recomendando que os regimes aberto e semiaberto fossem convertidos em domiciliar, com exceção de presos submetidos a processo disciplinar por falta grave (TJMG, 2020).

Por fim, na região Sul, em Santa Catarina 1.077 pessoas foram retiradas do sistema prisional, com atenção a idosos, portadores de doenças crônicas e internos próximos de progredir para o aberto. No Paraná, decisões incluíram a concessão de progressão de regime semiaberto e a prisão domiciliar a uma pessoa idosa ao levar em conta a superlotação da unidade prisional e a falta de unidade de atendimento médico (CNJ, 2020).

CONCLUSÃO

Desse modo, essa investigação destaca que apesar das autoridades competentes moverem esforços para reduzir o impacto negativo da disseminação do novo Coronavírus nos estabelecimentos prisionais brasileiros, o foco do problema é anterior à chegada dessa doença. A dificuldade encontrada para a efetivação das medidas de proteção e prevenção evidenciam a impraticabilidade do regime e a falta de estrutura para garantir as condições mínimas de reinserção desses indivíduos na sociedade de forma digna.

Percebe-se assim, que o regime semiaberto tem sido esquecido pelo Estado, a realidade é distante do previsto na lei e essas pessoas submetidas ao cárcere saem mais desamparadas do que quando entraram.

Assim, fica claro a urgência por investimentos do governo em colônias agrícolas e industriais e ressalta-se a viabilidade do emprego de recursos nesses estabelecimentos já que esses podem tornar-se autossustentáveis e havendo maior interesse do governo em construir locais próprios para o cumprimento desse regime é possível desafogar consideravelmente os presídios.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, 7 dez. 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 27 abr. 2020.

BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, 11 jul. 1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 27 abr. 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Agência CNJ de Notícias. Judiciário se mobiliza para prevenir Covid-19 em presídios. [S. l.], 26 mar. 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/judiciario-nacional-se-mobiliza-para-contencao-da-covid-19-nos-presidios/. Acesso em: 23 abr. 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020. Recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus ? Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. [S. l.], 17 mar. 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 23 abr. 2020.

MJSP. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Infopen: Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional — SISDEPEN. [S. l.], Dezembro 2019. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-analiticos/br/br. Acesso em: 24 abr. 2020.

MPDFT. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Coronavírus: Saídas de presos em regime semiaberto são suspensas mediante compensação. [S. l.], 23 mar. 2020. Disponível em: https://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/comunicacao-menu/sala-de-imprensa/noticias/. Acesso em: 31 mai 2020.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de execução penal. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. ISBN 978–85–309–7965–2.

SILVA, Vanessa Laís de Moraes. A ineficiência do regime semiaberto. Orientador: Georges Carlos Fredderico Moreira Seigneur. 2013. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Direito) — Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2013.

STF. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 347 MC/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. DJ 09 set 2015. Tribunal Pleno. Diário da Justiça Eletrônico, 14 set. 2015.

TJAC. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ACRE. Poder Judiciário do Estado do Acre. Justiça decide que apenados em regime semiaberto devem trabalhar em locais autorizados. [S. l.], 9 abr. 2020. Disponível em: https://www.tjac.jus.br/noticias/. Acesso em: 31 maio 2020.

TJAP. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO AMAPÁ. Poder Judiciário do Estado do Amapá. Vara de Execuções Penais de Macapá publica Portaria com medidas temporárias de prevenção ao contágio do COVID-19. [S. l.], 18 mar. 2020. Disponível em: https://www.tjap.jus.br/portal/publicacoes/noticias/. Acesso em: 31 maio 2020.

TJMG. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Sistema prisional: medidas necessárias para o contingenciamento da pandemia do coronavírus: Procedimentos que serão adotados. [S. l.], 17 mar. 2020. Disponível em: https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/informes/. Acesso em: 31 maio 2020.

Sobre os autores:

Ione Campêlo da Silva é Bacharelanda em Direito na Universidade Estadual de Santa Cruz, ionecampelo@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/9280546880675176.

Pedro Germano dos Anjos é Mestre em Direito Público pela UFBA. Professor Assistente de Direito na Universidade Estadual de Santa Cruz — UESC. pganjos@uesc.br. http://lattes.cnpq.br/2632734443526649.

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