Reflexões e (in)certezas em torno dos aspectos contábeis tributários das medidas para enfrentamento da pandemia por COVID-19 no Brasil

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Por Filipe Casellato Scabora e Flávio Felipe Pereira Vieira dos Santos

Créditos de Imagem: Imagem de Steve Buissinne por Pixabay

1. Introdução

A pandemia de COVID-19 (coronavírus) no Brasil forçou instituições públicas, privadas e a população em geral a adotar um cotidiano de isolamento social e trabalho remoto — quando possível. A consequência lógica é a redução de atividades econômicas, com efeitos deletérios no fluxo de caixa e nas finanças de empresas (SCABORA, 2019), gerando demissões e ampliação nos pedidos de recuperação judicial e falência:

Fonte: elaborado pelos autores a partir dos dados do Serasa (2020)

Dentre as medidas adotadas para tentar amenizar tais efeitos nocivos à economia como um todo, a União e os Estados optaram pela prorrogação do pagamento de alguns tributos e/ou redução de suas alíquotas.

Contudo, o simples diferimento do pagamento de tributos por alguns meses pode não ser o suficiente para impedir uma derrocada econômica, principalmente no micro e pequeno empresariado, mais suscetível às intempéries. Dos 120 pedidos de recuperação judicial apresentados em abril, cerca de 44% são de micro e pequenas empresas; se analisamos o acumulado no ano, esse número sobre para quase 60% (SERASA, 2020).

Além disso, para efeitos contábeis, a obrigações de reconhecimento dos tributos permanece, devendo a empresa continuar registrando normalmente seus lançamentos, a despeito dessas prorrogações. Tal estrutura tem um impacto na análise financeira dos balanços, diante de um passivo oscilante e anômalo. Algumas considerações acerca desse quadro estão apresentadas a seguir.

2. Reflexões sobre a extensão dos efeitos da prorrogação de pagamentos e a redução de alíquotas de tributos em razão da pandemia de COVID-19

Diante dos efeitos de paralisação e retração da atividade econômica causados pelas políticas de isolamento social e quarentena em razão da pandemia de COVID-19, o Governo Federal adotou duas posturas principais na seara tributária[1]: a prorrogação do vencimento e a redução de alíquotas de alguns tributos federais[2].

Os tributos mais relevantes que sofreram prorrogação incluem as contribuições previdenciárias (INSS), Contribuição para o PIS/Pasep, COFINS e contribuição devida pelo empregador doméstico (Portaria nº. 139/2020) e aqueles devidos no âmbito do Simples Nacional (Resolução CGSN nº. 154/2020).

Quanto às reduções de alíquota, as operações de crédito contratadas entre abril e julho de 2020 tiveram alíquota de IOF reduzida a zero (Decreto nº 10.305/2020); bem como IPI e II sobre os produtos relacionados ao combate à pandemia (Decreto nº. 10.285/2020). Também as alíquotas devidas ao “Sistema S” (Sescoop, Sesi, Sesc, Sest, Senac, Senai, Senat e Senar) foram reduzidas em 50% (Medida Provisória nº. 932/2020).

Embora as prorrogações e reduções de alíquotas representem um alívio de caixa relevante, outros tributos substancialmente dispendiosos para os contribuintes, como o IRPJ, a CSLL e o IPI (para produtos em geral) não foram alvo de qualquer medida paliativa para atenuar os efeitos da pandemia sobre empresas. Ainda, saliente-se que as reduções de alíquotas são extremamente limitadas: a um setor econômico — como produtos relacionados ao combate da COVID-19 — ou período de tempo — geralmente alguns meses.

Evidentemente a prorrogação do pagamento de alguns tributos também não significa remissão tributária (perdão legal da dívida), mas, de fato, apenas um período de carência para pagamento. Como exemplo, veja-se o recolhimento da Contribuição para o PIS/Pasep e da COFINS da competência de março/2020, que deverão ser pagos no vencimento da competência de julho/2020 — isto é, agosto/2020 –, juntamente com o recolhimento das contribuições devidas no período regular. Isso significa que o pagamento das parcelas prorrogadas desses tributos deverá ser feito ainda esse ano, sem qualquer expectativa de que a pandemia esteja controlada e, tampouco, sem a certeza de que os contribuintes terão se recuperado economicamente, a ponto de poderem honrar com suas obrigações tributárias.

Afora isso, fato é que, se de um lado essas medidas na seara tributária podem contribuir para a sobrevida das empresas, a dinâmica contábil também tem exigido adaptação por parte das organizações. Temas como impairment,[3] valor justo e provisões tornaram à pauta não apenas do grande empresariado; os próprios reflexos das medidas tributárias também apresentam desafios.

Apesar das prorrogações no vencimento, as obrigações de reconhecimento contábil dos tributos pelo regime de competência[4] permanecem inalteradas, situação que deve, temporariamente, alavancar os passivos registrados das empresas, ao menos até a efetiva extinção do crédito tributário. A redução de alíquotas, por seu turno, pode influenciar os resultados operacionais, minorando as despesas com tributos.

Situações como essas têm um impacto na análise financeira dos balanços, seja para a própria organização, credores ou investidores; a forma como esses índices e resultados serão analisados durante e após a pandemia é mais um elemento de incerteza.

3. Considerações Finais

Não se olvida o esforço estatal para amenizar os impactos da crise econômica sob os contribuintes, ao mesmo tempo em que se impõe novas despesas para superar a pandemia e prestar auxílio à população. Contudo, a ausência de arrecadação nesse momento — ou sua prorrogação por períodos maiores — se traduz, efetivamente, em maior liquidez para as empresas e a população em geral, permitindo a manutenção de empregos e do consumo que, por sua vez, também se traduz na sobrevida das empresas e em arrecadação fiscal posterior.

A fim de garantir que a efetividade de medidas de alívio fiscal impacte de forma positiva a renda e o emprego da população, os entes federados competentes podem vincular a redução de alíquotas e prorrogação do pagamento de tributos ao compromisso de as empresas não demitirem seus funcionários, a semelhança da estabilidade parcial assegurada na hipótese de suspensão temporária dos contratos de trabalho (Medida Provisória nº. 936/2020).

A conclusão que os dados preliminares parecem sugerir (SERASA, 2020), contudo, é que as políticas adotadas pelos governos em matéria tributária são insuficientes para mitigar de forma relevante os impactos da paralisação econômica causados pela pandemia de COVID-19.

No campo do direito, menciona-se a chamada Teoria da Imprevisão, que, na órbita dos direitos particulares ou privados, assegura que, diante de eventos imprevisíveis, comporta-se a revisão das obrigações (contratuais), quando se tornarem excessivamente onerosas para uma das partes (NERY JR, 2011), o que encontra respaldo no próprio Código Civil, em seu artigo 478.[5] [6]

Heisenberg nos apresenta o princípio da incerteza do posto de vista das ciências naturais, de acordo com o qual seria impossível determinar, com precisão, a posição de uma partícula subatômica e sua velocidade.

Ambas as teorias — amplamente aceitas nos seus respectivos campos do conhecimento –, ao trazerem o elemento do incerto como tema central de suas proposições, parecem bem se aplicar às relações econômicas. Para David e Rabi (2020) “o princípio da incerteza parece apresentar-se naturalmente aderente a problemas de natureza econômica. Seria possível, por exemplo, uma empresa determinar a quantidade vendida e, simultaneamente, o preço de venda de um bem ou serviço?”.

Com efeito, a crise em curso — que é tanto sanitária quanto econômica e social — exige maior envolvimento do Estado, o que parece ser consenso até mesmo entre ideólogos neoliberais.[7] Isso significa, além de programas de auxílio econômico à população mais vulnerável, também medidas de alívio fiscal e financeiro ao empresariado, responsável por grande parcela dos empregos no país.

Trata-se não apenas de uma concessão governamental, mas, efetivamente, de uma medida essencial para que a própria economia se sustente a curto e médio prazo, diante de um cenário instável e incerto e no qual sociedade, empresas e Estado dependem de uma continuidade compartilhada — a questão segue sendo determinar, ao mesmo tempo, a amplitude desse envolvimento e onde ele trará os melhores resultados.

Referências

BRASIL, Decreto nº. 10.305/2020. Altera o Decreto nº 6.306, de 14 de dezembro de 2007, que regulamenta o Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários. Disponível em < http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.305-de-1-de-abril-de-2020-250853594> Acesso em 05/06/2020

______, Decreto nº. 10.285/2020. Reduz temporariamente as alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados — IPI incidentes sobre os produtos que menciona. Disponível < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10285.htm>. Acesso em 06/06/2020.

______, Medida Provisória nº. 932/2020. Altera as alíquotas de contribuição aos serviços sociais autônomos que especifica e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.ht >. Acesso em 06/06/2020.

______, Portaria nº. 139/2020. Prorroga o prazo para o recolhimento de tributos federais, na situação que especifica em decorrência da pandemia relacionada ao Coronavírus. Disponível em <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-139-de-3-de-abril-de-2020-251138204> Acesso em 06/06/2020.

______, Resolução CFSN nº. 154/2020. Dispõe sobre a prorrogação de prazos de pagamento de tributos no âmbito do Simples Nacional, em razão da pandemia da Covid-19. Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=108368>. Acesso em 06/06/2020.

DAVID, S.A.; RABI, J. A. A covid-19, a economia e a incerteza de Heisenberg. Jornal da USP. Disponível em: <https://jornal.usp.br/artigos/a-covid-19-a-economia-e-a-incerteza-de-heisenberg/>. Acesso em: 06/06/2020.

NERY JÚNIOR, N.; NERY, R. A. Código civil comentado. 8. ed., São Paulo: RT, 2011.

SCABORA, F. C. Fatores determinantes da recuperação judicial considerando os fluxos de caixa das firmas. 2019. Dissertação (Mestrado) — Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2019.

SERASA. Serasa Experian de Falências e Recuperações. Disponível em: < https://www.serasaexperian.com.br/amplie-seus-conhecimentos/indicadores-economicos>. Acesso em: 05/06/2020.

[1] No âmbito dos Estados e Municípios, iniciativas semelhantes também podem ser observadas, como, por exemplo, a Lei nº. 8.766/20 no Rio de Janeiro, que autorizou a isenção do ICMS nas contas de energia elétrica e serviços de telecomunicação por 180 dias e Decreto nº. 24.909/20 em Rondônia, que alterou o prazo de vencimento do ICMS, entre outros.

[2] Para maiores informações sobre outras medidas tributárias federais adotadas durante a pandemia do COVID-19, a RFB lançou um Perguntas e Respostas, que está disponível em http://receita.economia.gov.br/covid-19/perguntas-x-respostas-medidas-covid19-com-indice-15-04-2020.pdf

[3] Utilizado para determinação do valor recuperável de um ativo, entendido como o maior valor entre o valor justo líquido de despesas de venda e o seu valor em uso.

[4] De acordo com o regime de competência, receitas e despesas devem ser apropriadas no período no qual ocorrem, independentemente do efetivo recebimento das receitas ou do pagamento das despesas. Para fins tributários, a lei autoriza, em determinadas situações, a adoção do regime de caixa, no qual receitas e despesas são reconhecidas apenas por ocasião de sua realização.

[5]Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”.

[6] Atualmente aguardando sanção presidencial, o Projeto de Lei n°. 1.179/2020 que “dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19)” exime de serem tratados como eventos imprevistos o “aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário” (art. 7º).

[7] Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/28/coronavirus-cria-consenso-entre-economistas-sobre-papel-do-estado.htm>. Acesso em 05/06/2020.

Sobre os autores:

Filipe Casellato Scabora é Doutorando e Mestre em Controladoria e Contabilidade pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FEARP/USP). Graduado em Ciências Contábeis pela FEARP/USP e graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP); e-mail: fillipecasellato@psaa.com.br; endereço profissional na Rua Dr. Eduardo de Souza Aranha, 387, 7º Andar, CEP 05.543–121, São Paulo (SP).

Flávio Felipe Pereira Vieira dos Santos é Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP) — 9º semestre; e-mail: flavio.felipe.santos@usp.com.br; endereço profissional na Rua Bernardino de Campos, nº. 1.001, 10º andar, CEP: 14015–130, Ribeirão Preto (SP).

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