Redistribuição e Reconhecimento: lutas de fronteiras, mulheres e violências em tempos de pandemia

Por Fádia Yasmin Costa Mauro e Loiane Prado Verbicaro

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A pandemia tem reforçado a urgência de mudanças estruturais no país, assim como a imprescindibilidade do amparo humanitário, da solidariedade, da necessidade de assistência universal à saúde, com o fortalecimento da arquitetura de saúde pública, da defesa das universidades públicas, dos investimentos em pesquisa e confiança na ciência, da construção de uma rede de proteção social, do resgate aos valores democráticos e da implementação de uma agenda igualitária que contemple demandas de redistribuição e reconhecimento.

Sem dúvida que as mulheres estão no grupo dos mais vulneráveis e afetados pela pandemia do Coronavírus. É inclusive o que afirma a Organização das Nações Unidas (2020) ao advertir para os números alarmantes de aumento da violência doméstica neste período, dispondo que “a combinação de tensões econômicas e sociais provocadas pela pandemia, bem como restrições ao movimento, aumentaram dramaticamente o número de mulheres e meninas que enfrentam abusos, em quase todos os países”.

Para refletir sobre o agravamento da situação dos grupos vulneráveis e, em especial, a condição da mulher, consideramos oportuna a discussão do pensamento da filósofa Nancy Fraser [1] que, na sua concepção de justiça, entende a necessidade de contemplar a redistribuição e o reconhecimento sem reducionismos unívocos. Segundo a autora, “Isso significa, em parte, pensar em como conceituar reconhecimento cultural e igualdade social de forma a que sustentem um ao outro, ao invés de se aniquilarem” (FRASER, 2006, p. 231). Trata-se de uma oposição ao que a autora convém chamar de “falsas antíteses”, explicando a ideia segundo a qual injustiças devem ser compreendidas de forma interligadas, e não antitéticas ou abstratamente pensadas.

Fraser entende que injustiças simbólicas (de status) não podem — nem devem — ser entendidas ou reduzidas a meros desdobramentos das injustiças que se concretizam por meio da divisão de classes, ou vice-versa (FRASER, 2012, p. 414). Assim, compreende que injustiças devem ser analisadas mutuamente a partir de dois prismas: o econômico e o cultural. A injustiça econômica está diretamente relacionada à estrutura econômico-política da sociedade, à exploração do trabalho humano, marginalização, conflitos de classe que necessitam de novos modelos de redistribuição econômica e política. O segundo aspecto para compreensão da injustiça é o cultural ou simbólico, estando diretamente relacionado aos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação, a exemplo da dominação cultural, além da insivibilização ou ocultamento, como no caso de mulheres (FRASER, 2006). Assim, longe de ocuparem esferas apartadas, injustiça econômica e injustiça cultural normalmente estão imbricadas, dialeticamente, reforçando-se mutuamente, e os dilemas sociais e respostas a esses dilemas entrelaçados só podem ser formulados compreendendo-se sua relação de retroalimentação e também de necessidade de combate simultâneo destas.

Em Capitalismo em Debate (2020), Fraser retoma esta discussão centralizando o capitalismo muito além de um sistema econômico, justificando-o como uma verdadeira “ordem social institucionalizada”, que abriga múltiplas tendências de crises, para além das identificadas por Marx em “O Capital”, centradas nas lutas de classes. A visão de Fraser de capitalismo enquanto ordem social institucionalizada enriquece a ideia de luta social como pensada pelo marxismo. Para além do espectro econômico das lutas de classes, Fraser amplia-as para as chamadas lutas de fronteiras que revelam outros eixos de dominação que não os de classe, à exemplo da produção e reprodução de gênero. Isso porque no sistema capitalista existem divisões de primeiro plano e planos de fundo, e essas formas de dominação se configuram enquanto tão reais e arraigadas na sociedade quanto àquelas relacionadas às lutas de classe. Essa concepção também expõe a insuficiência da luta centrada no conflito trabalho x capital, que se reduz ao trabalho assalariado, ao “lugar da produção”. Essa visão exclui lutas em torno do trabalho não assalariado e expropriado, à exemplo das mulheres que, confinadas ao trabalho reprodutivo, não são consideradas como trabalhadoras. Suas lutas acontecem às margens dos pontos de produção e são moldadas por eixos de dominação, como gênero e raça. Nestes termos, é preciso uma compreensão alargada de lutas de classes.

Segundo Fraser, as “lutas de fronteira” não emergem de dentro da “economia, mas em pontos em que a produção encontra a reprodução, a econômica encontra a política e a sociedade humana encontra a natureza não humana” (FRASER, 2020, p. 187). Tais fronteiras constituem os lugares e, ao mesmo tempo, os temas das lutas, objetos de contestação, estando, portanto, sustentadas no próprio desenvolvimento da sociedade capitalista, de modo que não é possível identificá-las como secundárias ou, ainda, superestruturais.

Para Fraser (2006), a correção para a injustiça econômica depende de uma necessária reestruturação político-econômica, envolvendo a redistribuição de renda ou ainda uma reestruturação da divisão do trabalho, compreendida nesta, por exemplo, a divisão sexual de trabalho e o trabalho não remunerado de mulheres, como parte de uma nova instituição social que repense as formas de trabalho. A isso, Fraser denomina “redistribuição”. Por sua vez, para o enfrentamento da injustiça cultural, é necessário repensarmos em uma mudança estrutural normativa e valorativa da sociedade, na qual sejam apreciadas as identidades de grupos vulnerabilizados a partir de uma transformação dos padrões sociais representativos, de interpretação e comunicação desses sujeitos. A essa compreensão, Fraser denomina “reconhecimento”.

O gênero então, a partir de todos esses pressupostos, precisa ser vislumbrado enquanto um paradigma de “coletividade bivalente” no interior das lutas de fronteira, isso porque abarca dimensões tanto de injustiças econômicas (lutas de classe), quanto de injustiças cultural-valorativas e de status. Redistribuição e reconhecimento, portanto, precisam estar fundamentalmente entrelaçados na ótica de uma resolução das injustiças. Sob esse aspecto, segundo Fraser (2006), a injustiça de gênero parte de uma premissa que reivindica compensações redistributivas para eliminação de estruturas de poder nas quais mulheres são subjugadas por sua força de trabalho. Como o gênero não é somente uma categoria de diferenciação econômico-política, mas também de valoração cultural, Fraser também o enquadra na categoria do reconhecimento, exigindo uma reconstrução do privilégio da masculinidade, do sexismo cultural e da exploração de mulheres em razão de padrões estéticos, culturais e comportamentais de “feminilidade” que estão diretamente relacionadas à violência doméstica generalizada e à sua exploração sexual.

Fraser entende que as identidades grupais são objeto do reconhecimento social e que é preciso atribuir certos modos de consciência ao papel de mudança social. Aponta para a existência de padrões culturais e valorativos institucionalizados que obstaculizam a participação na vida social de forma equânime. Neste sentido, as reivindicações por reconhecimento são entendidas como formas de desinstitucionalizar padrões de valor cultural que impedem a equidade de participação, para trocá-los por outros que a encorajem, de modo que padrões de justiça distributiva devem promover o acesso ao reconhecimento de grupos vulnerabilizados, entre os quais compreendem-se as mulheres, entre outros sujeitos sociais, entendendo-se a justiça enquanto bidimensional: redistribuição e reconhecimento numa relação de co-pertença, sem secundarismos, estando eles tão à frente das lutas sociais, quanto os aspectos de classe.

No contexto pandêmico que nos assola, a ausência de políticas públicas — que deveriam ser intensificadas ante os números alarmantes de violência — com viés de gênero no Brasil é latente, tanto do ponto de vista da redistribuição, quanto do reconhecimento. A ausência desse direcionamento na tomada de decisões públicas e políticas é clara. Desconsidera-se os múltiplos fardos aos quais mulheres estão vinculadas, além da evidente sobrecarga de funções, do trabalho doméstico não remunerado, do cuidado com filhos, com saúde emocional e, ainda, a atenção aos níveis de produtividade no trabalho desenvolvido, com todos os fatores anteriores somados. Ao encontro desse cenário, dados do projeto brasileiro Parent in Science (2020, online), que acompanhou a produção acadêmica durante a pandemia, demonstram que 40% das mulheres pesquisadoras sem filhos não concluíram seus artigos, contra 20% dos homens pesquisadores. Ainda, 52% das mulheres pesquisadoras com filhos não concluíram seus artigos, contra 38% de homens pesquisadores.

Já no âmbito do reconhecimento, a fala do Presidente Jair Bolsonaro (Março, 2020), ao dizer que “tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?”, justifica a ocorrência de violência doméstica em razão dos níveis de isolamento social, desemprego ou à presença de companheiros e maridos no âmbito doméstico, fugindo do combate à estrutura de dominação e violência a que as mulheres são submetidas em seus relacionamentos, bem como, da necessidade de proteção que deveria ser conferida pelo Estado.

Em contraste com esse posicionamento nefário, a ONU, para prevenção e combate à violência de gênero durante a pandemia, propôs aos países o aumento de investimentos em serviços online e em organizações da sociedade civil para garantir que os sistemas judiciais continuem processando os agressores, com sistemas de alerta de emergência em farmácias e mercados. (ONU, 2020). Entre outras respostas sugeridas pela Organização, estão a criação de abrigos para vítimas de violência de gênero e a ampliação de conscientização pública, através de peças publicitárias, a fim de garantir o maior alcance possível dessas medidas.

O Brasil, embora tenha apresentado algumas medidas de combate à violência doméstica, como ampliação de serviços da delegacia eletrônica e registro online de boletins de ocorrências de violência doméstica, realizados pelo Estado de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, bem como a criação de um aplicativo, o “Direitos Humanos BR”, para denúncia de violações, pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e a manutenção da Central de Atendimento através do 180 — Central de Atendimento à Mulher, estas ainda estão longe de representarem políticas de enfrentamento suficientes contra as estatísticas da quarentena e os aumentos não só da violência, mas de feminicídios contra mulheres. (CASTRO, 2020).

É tempo de reavaliar os problemas mais profundos de nossas sociedades, de refletir sobre as contradições sistêmicas e institucionais que vêm se acirrando no capitalismo em sua fase financeirizada e neoliberal, o que provoca um contínuo de expropriação e exploração. Considerando que a versão financeirizada do capitalismo contemporâneo constitui um regime de expropriação universalizada, que se agrava com o corte de apoio público à reprodução social, torna-se difícil vislumbrar um caminho democrático que não perpasse pela transformação estrutural da matriz social marcada por atravessamentos de gênero, raça e classe e por uma concepção de justiça que alie demandas de redistribuição somadas às de reconhecimento.

Notas

[1] O livro “Capitalismo em Debate” (2020) foi objeto de discussão, em julho deste ano, no Grupo de Pesquisa: Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito (UFPA).

Referências

CASTRO, Luiz Felipe. Subnotificação e gatilhos: o drama da violência doméstica na quarentena. Veja, 29 abri. 020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/subnotificacao-e-gatilhos-o-drama-da-violencia-domestica-na-quarentena/. Acesso em 26 mai. 2020.

CATRACA LIVRE. Bolsonaro usa violência doméstica para criticar isolamento social. Catraca Livre, 30 mar. 2020. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/bolsonaro-usa-violencia-domestica-para-criticar-isolamento-social/. Acesso em: 26 mai. 2020.

FLECK, Amaro de Oliveira. Sobre os conceitos de justiça e liberdade nas obras de Sen e Fraser. Revista Dissertatio, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, v. 37, p. 117–138, 2013. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.15210/dissertatio.v37i0.8646> . Acesso em: 26 mai. 2020

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos De Campo, São Paulo, v. 15, n. 14/15, p. 231–239, 2006. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50109. Acesso em: 26 mai. 2020

FRASER, Nancy. Justice interruptus: critical reflections on the “postsocialist” condition. London: Routledge, 1997.

FRASER, Nancy. “Social justice in the age of identity politics: redistribution, recognition, and participation”. In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition? A political-philosophical exchange. London and New York: Verso Books, 2003, p. 7–109.

FRASER, Nancy. Escalas de Justicia. Tradução de Antoni Martínez Riu. Barcelona/ES: Herder Editorial, 2012.

FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em Debate: uma conversa na teoria crítica. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

GARCIA, Janaina. Produção científica de mulheres despenca na pandemia — de homens, bem menos. Uol, 26 mai. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/26/pandemia-pode-acentuar-disparidade-entre-homens-e-mulheres-na-ciencia.htm. Acesso em: 26 mai. 2020.

ONU — ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Chefe da ONU alerta para aumento da violência doméstica em meio à pandemia do coronavírus. Nações Unidas Brasil, 06 abr. 2020. Disponível em:https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-alerta-para-aumento-da-violencia-domestica-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/. Acesso em: 20 mai. 2020.

Sobre os autores

Fádia Yasmin Costa Mauro é doutoranda em Direitos Humanos de Grupos Vulneráveis pelo PPGD/UFPA. Integrante do Grupo de Pesquisa Filosofia Prática (CNPq): Investigações em Política, Ética e Direito do PPGFIL/UFPA, na linha “Gênero e Teoria Crítica”. Advogada e Vice-Presidente da Comissão de Proteção aos Direitos da Pessoa Com Deficiência da OAB/PA.

Loiane Prado Verbicaro é professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do Grupo de Pesquisa (CNPq): Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito (UFPA). Editora-chefe da Revista Apoena (UFPA).

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Revista Direito, Estado e Sociedade

Revista organizada, desde 1991, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, com o objetivo de divulgar intervenções interdisciplinares e inovadoras.