Quem fica em casa? Breves considerações sobre o Direito à moradia em tempos de pandemia
Por Nadja Karin Pellejero e César Augusto Costa
A crise desencadeada pela pandemia de Coronavírus (COVID-19) se refere não somente a uma crise sanitária internacional[1], mas também econômica e habitacional, desta forma, entre as recomendações da OMS, está a de isolamento social e quarentena, para evitar que o vírus se espalhe em velocidade que leve ao colapso o sistema de saúde. A moradia tem um papel central nessa discussão, pois se coloca como local fundamental de desenvolvimento da vida humana, logo se verifica que também concentra vários interesses da sociedade brasileira, podendo ser caracterizada em importantes categorias de análise: a moradia como demanda, moradia como mercadoria, moradia como um direito social coletivo, como déficit e como política pública, como bem caracterizada por Buonfiglio (2018).
Ainda, é relevante destacar o que observa a referida autora, que a habitação como política pública é a mais complexa por reunir significados concomitantes: “necessidade básica e histórica, enquadrada como demanda, vendida como mercadoria, computada como déficit, reclamada como direito, transformada em política pública social e de mercado a um só tempo” (BUONFIGLIO, 2018).
Nesta lógica, a construção de políticas públicas no campo da moradia e da cidade, é o jogo que concentra diferentes interesses, tanto do ponto de vista social, como econômico. O processo espacial e social de segregação urbana possui implicações diretas com o problema da moradia sendo urgente a retomada da implementação de políticas públicas que atendam a essas demandas, entre outras. Temos observado um amplo processo de desigualdades nas cidades, quando se articulam logicamente os espaços destinados as chamadas “zonas de sacrifício” (ACSELRAD, 2015) e os espaços valorizados pelo marketing urbano de “consumismo de lugar”, próprios ao urbanismo-espetáculo contemporâneo. A cidade torna-se com a mercantilização da publicidade comercial e do advento do esforço de venda das cidades e de alguns de seus lugares -, lugar do consumismo de lugar, gerando a intensificação de gentrificação e de expulsão de grupos sociais despossuídos de áreas de interesse para grandes projetos urbanísticos. Eis a expressão da desigualdade ambiental que exprime o processo de concentração de poder, por parte dos agentes das práticas espaciais dominantes, de impactar a terceiros (despossuídos economicamente) e de não ser por estes impactados. Para isso, justificam-se, no plano discursivo, flexibilização de normas e regressão e violação de direitos nas cidades (ACSELRAD, 2015).
O coronavírus tornou mais alarmante o não acesso ao saneamento básico e a moradias com condições que permitam o isolamento social e a prevenção necessária. Logo, vivencia-se assim um processo de “necropolítica” também na área habitacional, eis que o sistema capitalista é baseado na distribuição desigual das oportunidades de viver e de morrer, Mbembe[2] em recente entrevista no mês de março, assim afirmou: “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado”.
A pandemia da Covid-19 foi um alerta de que uma casa com condições dignas é fundamental para a saúde e a defesa da vida. Porém, observa-se que as campanhas de prevenção têm como slogan: “fique em casa”, mas deve-se questionar, antes de tudo, quem é que tem uma casa onde ficar? E quando a tem, será que esta possui condições mínimas de habitabilidade? Ainda, há que se considerar também aqueles que perdem seus empregos devido a crise econômica e não tem mais condições de arcar com aluguel, ou ainda, os que estão em ocupações e estão sofrendo processos de reintegração, como se viu em Pelotas/RS, São Paulo/RS entre outros lugares, o que é de uma desumanidade absurda.
Nesse contexto, urge que os mecanismos legais correspondam preservando o direito social constitucional à moradia, conforme art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil. As reintegrações, muitas vezes, são medidas que vão contra esse direito e atingem justamente populações vulneráveis que vivem em locais com excessivo adensamento e coabitação. Os processos, geralmente, conduzem as famílias a situações de maior precariedade e exposição ao vírus e, em casos extremos, a morarem na rua, o que torna impossível o tratamento adequado e o isolamento necessário.
Ademais, os efeitos da crise desencadeada pela pandemia, a qual se desdobra na dificuldade de conseguir arcar com os custos do aluguel residencial, especialmente em períodos de recessão econômica e emergência como no caso atual, assim sendo, medidas como o cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou mesmo extrajudiciais, por qualquer motivo, tanto na área urbana quanto rural devem se suspensas por tempo indeterminado.
Nesse sentido, grave ainda é a situação do grande número de pessoas que moram em locais sem saneamento, ou em domicílios aglomerados subanormais, ou ainda em coabitação, eis que segundo relatório produzido pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) no Brasil em 2020, 24 milhões de pessoas (12% da população) não têm casa adequada, 35 milhões de pessoas, (16% da população não têm abastecimento regular de água), 100 milhões de pessoas (47% da população não têm coleta de esgoto).
Essa “Coronacrise” (Expressão utilizada por Erminia Maricato[3]) deveria trazer consigo a urgente necessidade de que se priorizasse a produção de moradias adequadas e se fornecesse saneamento básico. Rolnik (2015) corrobora com este entendimento á medida que afirma: “A terra urbanizada bem localizada e dotada de infraestrutura tornou-se cada vez mais inacessível ao trabalhador”. O que acaba implicando em uma autoprodução de moradias em condições muito precárias, tendo-se como resultado final um déficit habitacional de aproximadamente 7,78 milhões de unidades habitacionais[4].
Considerando esse grande déficit potencializado pela pandemia — a qual escancara uma crise socioeconômica que já se aprofundara com o atual “desgoverno” Bolsonaro — responsável pela aniquilação dos direitos trabalhistas e sociais, que perpassam, entre outros, desde a previdência social, alimentação (segurança alimentar) á moradia, sendo que neste último caso praticamente extinguiu o PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida) o qual era referência na produção e oferta de moradias para a população de baixa renda.
Logo, neste cenário caótico, como encontrar alternativas que acabem ou minimizem os impactos da pandemia nestas populações mais fragilizadas? Primeiramente, seria essencial instituir uma renda mínima permanente até que se estabilize essa situação, ainda urgente buscar junto às comunidades alternativas para que estas sejam protagonistas nas decisões que serão tomadas, segundo o Observatório de Favelas há muitos projetos que buscam, por exemplo, nos mutirões de autogestão uma alternativa para construção de moradias.
Outra medida essencial é promover mecanismos para que se cumpra a função social da propriedade, que sejam mapeados imóveis ociosos e que estes se destinem a quem mais necessita. Também o aluguel social é outro mecanismo que poderia ser adotado. Mecanismos existem, falta é interesse político para que estes sejam implementados, a efetivação do direito à moradia se vincula a necessidade que os outros tantos direitos tem em relação à sua existência, pois, a sua prestação relaciona-se a direitos como a vida, a segurança, educação, saúde, entre tantos, mas neste momento, mais do que nunca, a moradia digna é um direito atrelado a própria sobrevivência das populações mais carentes, as quais encontram-se a mercê de um Estado que tem primado pela necropolítica, onde o vírus sim, tem classe social. O confinamento em si é um exercício de poder, no qual as condições sociais, econômicas, e estruturais serão determinantes para “escolher” quem vive, ou quem morre.
[1] Reconhecida como pandemia pela Organização Mundial da Saúde — OMS, no dia 11 de março de 2020, sendo que na data de hoje (23/05/2020) o número de contaminados no país ultrapassa trezentos e quarenta e sete mil pessoas e o de óbitos, mais de vinte e dois mil.
[2] Cientista político, filósofo, professor camaronês, Achille Mbembe, traz a categoria “necropolítica” a qual estuda como o Estado decide que vive e quem morre.
[3] Segundo a autora: “O contágio nas periferias urbanas e metropolitanas, horizontalizadas e altamente adensadas, que apresentam congestionamento habitacional e problemas de saneamento, deverá ser severo. Aparentemente, a grande mídia descobriu que aproximadamente 12 milhões de pessoas vivem em favelas no Brasil, mas ela desconhece que o número de domicílios em favelas é subdimensionado (apesar da qualidade do levantamento do IBGE) e que não são apenas os domicílios de favelas que apresentam congestionamento de moradores por cômodos, mas, quase certamente, a maior parte dos domicílios nas regiões metropolitanas”.
[4] Não existem dados atualizados, porque o último Censo (IBGE) foi em 2010. E o Censo 2020 teve que ser adiado pandemia. Mas estudo da Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, produzido com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), oferece um cenário aproximado, com números de 2017.
Referências
ACSELRAD, H. Vulnerabilidade social, conflitos ambientais e regulação urbana. O Social em Questão — Ano XVIII — nº 33–2015. p. 57–68.
BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 21 de maio de 2020.
BRASIL — MINISTÉRIO DAS CIDADES. PLANO NACIONAL DE HABITAÇÃO Ministério das Cidades.
BUONFIGLIO, Leda. Habitação de Interesse Social. Mercator, Fortaleza, v. 17, e17004, 2018. DOI: https://doi.org/10.4215/rm2018.e17004. Acesso em 20/05/2020.
___________. Da política urbana federal à produção do espaço municipal. Tese (Doutorado em Geografia) Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home. Acesso em: 21 de maio de 2020.
MARICATO, Ermínia. A Coronacrise e as emergências nas cidades. https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/a-coronacrise-e-as-emergencias-nas-cidades_9kkg9zYNUqaclmF_LXZlENACH3KP-B_94Eo2IUnq12u3I. Acesso em 15 de maio de 2020.
___________. Para Entender a Crise Urbana. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
MBEMBE, Achille. Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da “necropolítica”. https: //www1.folha.uol.com.br/cotidiano/coronavírus. Acesso em 19 de maio de 2020
ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2015.
Sobre os autores:
Nadja Karin Pellejero é Advogada, Doutoranda em Política Social e Direitos Humanos/UCPEL, Pesquisadora do Núcleo de Estudos Latino-Americano (NEL/UCPEL). Contato: nadjakpadvocacia@gmail.com
César Augusto Costa é Sociólogo, Docente no Programa de Política Social e Direitos Humanos/UCPEL, Coordenador do Núcleo de Estudos Latino-Americano (NEL/UCPEL).
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