A incompatibilidade de processos estruturais em tempos de pandemia
Por Matusalém Jobson Bezerra Dantas e Hemily Samila da Silva Saraiva
O mundo passa por um surto do novo Coronavírus (COVID-19), declarado como pandemia pela OMS[1], que está causando fortes abalos econômicos, sociais, políticos, jurídicos, dentre outros. É corrente o coro de que “o mundo não será o mesmo após essa pandemia”.
No que se refere mais diretamente aos efeitos jurídicos, muitos atos normativos foram editados para tentar diminuir o impacto da COVID-19 nas relações trabalhistas, nas relações consumeristas, na prestação de serviço público pelo Estado, no exercício estatal do poder de polícia etc. O presente artigo ater-se-á à prestação do serviço público de saúde, atinente à luta contra essa pandemia, objetivando tutelar esse direito fundamental social.
Sem dúvidas, o novo Coronavírus traz uma situação dramática para a sociedade. É fato público a deficiência estatal para fornecer ao cidadão um atendimento adequado de saúde, sendo comum a falta de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), respiradores mecânicos, medicamentos, enfim, de toda uma estrutura hospitalar mínima para garantir o referido direito social. Tal deficiência tem acarretado grande judicialização da saúde.
A questão trazida neste trabalho é se o Poder Judiciário tem condições de dar a melhor resposta para o problema estrutural da saúde pública frente a COVID-19, bem como se o processo estrutural é o instrumento adequado para isso.
Inquestionável que hodiernamente o Judiciário julga diante da omissão dos Poderes Legislativo e Executivo, na busca da efetividade dos direitos fundamentais. Todavia, ele deve ter o compromisso constitucional da autocontenção, a fim de que não usurpe, sob a justificativa de proteção da Constituição, a atividade que é precípua dos demais Poderes. O controle sobre os atos dos demais Poderes deve ser feito excepcionalmente e dentro de um processo democrático, o qual tornará a decisão judicial legitimada constitucionalmente, em máxima proteção ao princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º).
Em épocas pandêmicas, como a atual, tanto o Poder Executivo quanto o Poder Legislativo são muito demandados, seja pela necessidade de uma grande edição de normas jurídicas que atendam ao contexto de calamidade pública, seja pelo empenho do Executivo no exercício de políticas públicas para conduzir a população ao cenário de máxima proteção e mínimo impacto no cabedal de direitos.
Não é demais dizer que se está diante de um panorama de “guerra”, exigindo-se da Administração Pública, dentro de seu poder discricionário, a adoção das medidas mais oportunas e necessárias.
Nesse ambiente, permitir ao Judiciário a intervenção, notadamente em ações de cunho individual, poderá acarretar uma ingovernabilidade política, já que tais ações trazem grande impacto no orçamento público. Há de se exigir do Judiciário, com maior razão ainda, a responsabilidade de refletir sobre as consequências práticas de sua decisão, pois a intervenção irresponsável poderá acarretar prejuízo para toda a coletividade.
No momento em que se decide pela concessão de leitos de UTI, em ações individuais, por exemplo, intromete-se na gestão pública dos já escassos leitos. Outro exemplo é a determinação para a administração judicial de hospitais nessa época de pandemia. Sem dúvidas, não é uma boa medida, já que o juiz não tem condições de vislumbrar a melhor medida no momento, devendo deixar a cargo da Administração Pública, que detém especialistas em seus quadros burocráticos, objetivando auxiliar na melhor decisão política para a gestão hospitalar.
Enfim, o controle judicial de políticas públicas, que deve ser exercido excepcionalmente pelo Judiciário, em épocas de pandemia deve ser a fortiroi evitado. O estado de calamidade pública não é período de confronto entre os Poderes, mas época de maior diálogo institucional.
Em tempos de pandemia é difícil aplicar e solucionar processo estrutural, em curto espaço de tempo, pois necessita de cognição ampla e profunda, para solução de litígio complexo. Além disso, imprescindível a ampliação da cognição para participação de todos os sujeitos com contraditório expandido, incremento do diálogo, seja ele institucional ou intraprocessual, da oralidade, da cooperação.
Ou seja, o processo estrutural não é próprio para rápidas soluções, seja porque versa sobre problemas estruturais, portanto, complexos, seja porque essas soluções deveriam ser construídas cooperativamente pelos sujeitos processuais, com participação dos afetados, direta e indiretamente, de amicus curiae e com realização de audiências públicas.
Assim sendo, o processo estrutural tem o contraditório substancial, dinâmico e efetivo como elemento essencial, já que aquele (processo estrutural) não se fundamenta na adjudicação de uma decisão pelo Poder Judiciário, mas na construção da resolução por todos os envolvidos, em que o juiz não será o criador da solução, mas um articulador das ideias surgidas no curso do procedimento[2] e um gerente do procedimento, além de um interlocutor na sugestão de ideias também.[3]
Para que o processo estrutural, necessariamente dialógico, desenvolva-se nesse ambiente de cidadania processual[4], de democracia processual, mister o fortalecimento da oralidade, a fim de que as negociações, os debates, as interações sejam realizadas num ambiente mais informal, simples e imediato.
Outro ponto fundamental é a larga abertura para a liberdade processual, em que os sujeitos multipolares negociam tanto o direito material quanto o direito processual na busca da melhor solução para o litígio complexo, decorrente de problema estrutural. O foco do processo estrutural não é a tutela do direito material[5], mas a construção de um caminho consensual que resolva da forma mais satisfatória possível o litígio.
O procedimento é flexível, pois será “desenhado” numa audiência colaborativa inicial entre os sujeitos processuais. Nesse procedimento, o debate constante e o aprofundamento da questão de direito material deduzida devem buscar soluções aptas a pôr fim ao litígio. Todavia, tal litígio não se resolve em um momento pontual, mas, por se tratar de problema estrutural, demanda soluções em etapas, compartimentadas, a depender de vários fatores que vão surgindo no decorrer do processo (e muitos deles inimagináveis quando do início, já que a sociedade é dinâmica e os problemas advêm dela). A doutrina denomina essas decisões continuadas de provimentos em cascata.[6]
Deixe-se claro que o processo estrutural tem que ser apto para solucionar o problema estrutural (litígio complexo) globalmente considerado. Toda a teorização acima mencionada foi desenvolvida para ter aptidão da solução eficaz e completa do referido problema. Nesse sentido, ações individuais que, a partir de problemas estruturais, busquem solucionar topicamente o estado de ilicitude, não instauram processos estruturais[7], sendo o processo civil tradicional apto a tutelar tais direitos. Trata-se, ao fim a e ao cabo, de mero efeito individual do problema estrutural.
O Código de Processo Civil é instrumento normativo tanto do modelo individual quanto do estrutural. Trata-se de norma geral de direito processual[8], construído a partir de normas fundamentais próprias de um Estado Democrático de Direito.
Digno de nota o fato de que em tempos de pandemia, como o do novo Coronavírus (COVID-19), o isolamento social e, em alguns casos, o lockdown impedem que a audiência seja realizada presencialmente, exigindo que as reuniões se dessem remotamente. Não obstante o avanço tecnológico, a teleaudiência traz mais “frieza”, distanciamento quando comparado com a modalidade presencial, o que, indene de dúvidas, traria prejuízos para o brain storm, o design thinking, indispensáveis para o modelo da decisão construída do processo estrutural.
Por fim, para a instauração e desenvolvimento do processo estrutural, torna-se imprescindível um modelo mais dialógico, cooperativo, em que as partes tenham poder de influenciar e construir as decisões. Há também designação de audiências públicas e a participação de amicus curiae, tornando o processo mais legítimo, com mais cidadania processual. O próprio procedimento não é previamente estabelecido em lei, mas construído dialogicamente pelos sujeitos multipolares, adaptando-o ao litígio deduzido em juízo.
Diante disso, fica claro perceber que o processo estrutural reclama tempo para ser desenvolvido, em virtude de sua característica de ser manufaturado, plural, colaborativo e democrático. E esse tempo de que necessita o processo estrutural é incompatível com a época de pandemia, a qual exige rápidas respostas.
Acredita-se que a melhor resposta para momentos de excepcionalidade, com o atual (COVID-19), é dada pelos Poderes mais politizados, Legislativo e Executivo, devendo o Judiciário, em ultima ratio, atuar no controle dos atos de tais Poderes, com responsabilidade decisória (consequencialismo).
[1]Conforme declaração pública pela Organização Mundial da Saúde — OMS, de 11 de março de 2020, bem como a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional da OMS, de 30 de janeiro de 2020.
[2]Num verdadeiro procedimento de design thinking law.
[3]Em sentido contrário, defendendo o protagonismo judicial na decisão estrutural, ver FISS, Owen. “O antagonismo não é binário. Contrariamente, o que encontramos em um processo judicial estrutural é conjunto de perspectivas e interesses concorrentes organizados em torno de uma série de questões e um único órgão de decisão, o juiz.” em As bases políticas e sociais da adjudicação. Um novo Processo Civil: estudos norte-americanos sobre Jurisdição, Constituição e sociedade. Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós (trads.) São Paulo: RT, 2004. p. 109.
[4]Vide PORTO, Sérgio Gilberto. Cidadania Processual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
[5]Ver interessante pensamento de Sérgio Gilberto Porto: “repensar o processo como instrumento preponderantemente de realização dos propósitos constitucionais e não apenas como instrumento de realização do direito material infraconstitucional. Nesse passo, emerge a necessidade de (re)compreender a processo civil contemporâneo, como forma de promover a solução dos conflitos de interesses sintonizada com os ideias constitucionais.” em PORTO, Sérgio Gilberto. Processo civil contemporâneo: Elementos, ideologia e perspectivas. — 2 ed. rev. atual., e ampl. — Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 116.
[6]ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v. 225, São Paulo, RT, 2013. p. 6. “Por outro lado, é muito frequente no emprego de medidas estruturais a necessidade de se recorrer a provimentos em cascata, de modo que os problemas devam ser resolvidos à medida que apareçam. Assim, por exemplo, é típico das medidas estruturais a prolação de uma primeira decisão, que se limitará a fixar em linhas gerais as diretrizes para a proteção do direito a ser tutelado, criando o núcleo da posição jurisdicional sobre o problema a ele levado. Após essa primeira decisão — normalmente, mais genérica, abrangente e quase ‘principiológica’, no sentido de que terá como principal função estabelecer a “primeira impressão” sobre as necessidades da tutela jurisdicional — outras decisões serão exigidas, para a solução de problemas e questões pontuais, surgidas na implementação da “decisão-núcleo”, ou para a especificação de alguma prática devida. Possivelmente, isso se sucederá em uma ampla cadeia de decisões, que implicarão avanços e retrocessos no âmbito de proteção inicialmente afirmado, de forma a adequar, da melhor forma viável, a tutela judicial àquilo que seja efetivamente possível de se lograr no caso concreto. Não raras vezes, esses provimentos implicarão técnicas semelhantes à negociação e à mediação.”
[7]Em sentido contrário: “É possível que o processo seja estrutural e seja bipolar — isto é, envolva apenas dois polos de interesses; também é possível que, a despeito da multipolaridade, o processo Mao seja estrutural. (…) Essa é tipicamente uma ação individual, mas que tem inequívoca natureza estruturante. DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR., Hermes. Direito Processual Civil: processo coletivo. — 14 ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. p. 581–582.
[8]Por analogia, pode-se citar a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB), que rege todo o sistema jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS
ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, ano 38, v. 225, São Paulo, RT, 2013.
DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Direito Processual Civil: processo coletivo. — 14 ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
FISS, OWEN. Um novo Processo Civil: estudos norte-americanos sobre Jurisdição, Constituição e sociedade. Daniel Porto Godinho da Silva e Melina de Medeiros Rós (trads.) São Paulo: RT, 2004.
PORTO, Sérgio Gilberto. Processo civil contemporâneo: Elementos, ideologia e perspectivas. — 2 ed. rev. atual., e ampl. — Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
____________________. Cidadania Processual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.
Sobre os autores:
Matusalém Jobson Bezerra Dantas é Vice-Presidente do Instituto Potiguar de Direito Processual Civil/IPPC. Professor de Direito Processual Civil do Centro Universitário do Rio Grande do Norte/UNI-RN. Membro da Associação Brasileira da Direito Processual/ABDPro e da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo/ANNEP. Especialista em Direito Civil e Processo Civil/UFRN. Diretor de Secretaria da Justiça Federal no Rio Grande do Norte, Natal — RN — Brasil. E-mail: matusalemdantas@gmail.com.
Hemily Samila da Silva Saraiva é Mestranda em Direito/UFRN. Especialista em Direito Administrativo/UFRN, Direito Privado: Civil e Empresarial/UNP e Direito Processual Civil/UNI-RN. Advogada. Membro do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes — IDASF. Natal — RN — Brasil. E-mail: saraivahemily@gmail.com.
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