Pandemia é o grande teste para o constitucionalismo social brasileiro
Por Gabriel da Silva Prado
“A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida é que são ingovernáveis”, respondeu Ulysses Guimarães cunhando a frase que ficaria célebre ao encerrar o processo constituinte de 1987–1988. A governabilidade do país estava ameaçada segundo o então presidente José Sarney pela nova carta constitucional que era escrita repleta de direitos fundamentais. O texto, de afirmação social e democrática, acentua a fase do constitucionalismo do Estado social no Brasil inaugurada pela Constituição Brasileira de 1934.
As doenças inassistidas, pouco cuidadas, não providas, que preocupavam os deputados constituintes daquela época entraram para a agenda pública ainda no período imperial (1822–1989). Acometido de uma moléstia até então pouco conhecida, o filho mais novo do imperador Dom Pedro II, Pedro Afonso, morreu em 1850, ao que tudo indica, na primeira grande onda da epidemia de febre amarela. Já reclusos em Petrópolis, a família real se afastou da capital do império que era assolada por graves doenças resultantes das precárias condições sanitárias.
O Rio de Janeiro então passou por um longo processo sanitário e de transformação urbana na segunda metade do século XIX que culminaria na Revolta da Vacina em 1904. Conforme aponta o historiador Sidney Chalhoub, a organização urbana marcada por moradias coletivas e a desigualdade estrutural na qual se desenvolveu a sociedade imperial impactou diretamente no avanço das epidemias da época. A derruba de cortiços sob o argumento sanitarista levou ao surgimento das favelas e moradias irregulares, intensificando a distribuição desordenada da população no meio urbano até os dias atuais. Problema este que vem sendo apontado como intensificador do quadro alarmante da pandemia de COVID-19 que se desdobra no país.
A marginalização social relegada a milhões de brasileiros que atravessou o século XIX passou a ter uma nova abordagem a partir da Constituição de 1934. Com caráter social muito refletido da Constituição de Weimar de 1919, segundo Paulo Sarasate, as experiências constitucionais de 1934 e a de 1947 inauguraram no país uma fase realçada de proteções sociais com suas leias trabalhistas, direitos democráticos, nacionalismo econômico. Os indivíduos passaram a ser os destinatários finais da norma constitucional enquanto o Estado o garantidor desses novos direitos sociais.
A Carta 1988 é a virada completa nessa mudança de paradigma iniciada no começo do século XX. O modelo inaugurado na experiência constitucional contemporânea levou ao que a cientista política Marta Arretche chamou de inclusão dos outsiders. A diminuição da desigualdade por meio das da transferências governamentais e compressão salarial ou com o aumento do acesso à serviços de saúde e educação acontece de forma mais robusta a partir do início da década de 1990. Para além dos fatores econômicos e demográficos, a política de inclusão dos marginalizados intensificado pela Constituição de 1988 afetou de forma positiva a redução da desigualdade no Brasil.
O Estado social que toma corpo solido a partir da Constituição de 1988 é a tentativa mais vigorosa da experiência constitucional nacional em correr atrás dos anos de descuido do social. O Brasil chegou às portas da constituinte de 1987–1988 sem ainda ter erradicado o analfabetismo — com o ensino público quase entrando em colapso — , uma escalada inflacionária advinda do regime militar, aumento da dívida externa e uma vasta concentração regional, setorial e social de renda em grande parte consequência da passividade do Estado frente à dimensão das desigualdades no país.
Dentre os mecanismos que levaram à diminuição das desigualdades pela Constituição de 1988 destacamos dois deles; (1) a vinculação do piso das pensões, contributivas e não contributivas, ao valor do salário mínimo, que passou a ser ajustado anualmente acima da inflação e (2) a universalização do acesso à saúde. Após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990, a Constituição de 1988 pode trocar o modelo de seguro privado por um sistema público, de caráter universal e gratuito. Conforme salienta Arretche, até aquele momento apenas os trabalhadores formais e os contribuintes autônomos tinham garantido o direito à saúde.
Estes dois pilares, fundamentais para o Estado social brasileiros, estão sendo testados em suas dimensões e ambições, neste momento, durante a pandemia de coronavírus. As ambições do constitucionalismo social brasileiro já foram testadas em outros momentos, como na crise que atingiu o país de 2014 a 2015. Os estudos mostraram que as políticas que vieram com a Constituição de 1988 e promoveram a inclusão dos marginalizados amortecem os efeitos da crise econômicas sobre os mais pobres, exceto os extremamente pobres que de fato perderam renda.
O Instituto de pesquisa Locomotiva/Data Favela aponta que 13,6 milhões de pessoas vivem em favelas no Brasil. Dessas 13,6 milhões, 47% trabalham por conta própria, seja como autônomo ou profissional liberal, 19% tem carteira assinada e 10% estão desempregados. Com base nesse arranjo social, por mais que a transmissão do vírus ocorra independentemente de cor, classe e endereço, quando ela atinge as estruturas urbanas desiguais, em grande parte edificadas pelo Estado desde o período imperial como visto, consequentemente, um grupo de pessoas é mais afetado do que o outro. Como responderá o Estado social brasileiro à crise presente?
Conseguirá o acesso à saúde universal e gratuito driblar os interesses econômicos dos grupos farmacêuticos e convênios médicos durante a pandemia? Até que medida as determinações, e a própria estrutura orçamentaria, deram folego para o SUS nessa nova ordem constitucional é o que perguntamos. As filas dos desempregados se engrossam nesse momento e questionamos se a vinculação constitucional do valor do salário mínimo e as demais proteções trabalhistas constitucionais darão conta dos estragos da pandemia no tecido social do Brasil.
O constitucionalismo social tem como mérito a diminuição das desigualdades no país, fortalecimento da democracia e dispor até certa medida de ferramentas até então ainda não vistas na tradição do Estado social para a efetivação dos direitos fundamentais. O Mandado de Injunção, a exemplo, permitiu que os direitos tutelados pela Constituição de 1988 entrassem no plano da viabilidade uma vez que pela própria ordem constitucional sempre foram dotados de máxima efetividade, ou seja, já se encontrariam hábeis a serem cumpridos desde a promulgação do texto constitucional.
A prova-teste em que se encontra o constitucionalismo social brasileiro não se afasta da crítica ao Estado social em geral. Sintetizado por Franz Horner, parte do problema está no fato de que o Direito Constitucional busca alcançar os objetivos do Estado social de agora com as técnicas do Estado de Direito do passado — modelo abarcado pelo superado constitucionalismo liberal. O modelo constitucional contemporâneo possui poucos mecanismos para tornar efetivo os direitos sociais que tutela.
Direitos sociais esses que estão sendo cobrados a todo momento durante a pandemia. As cobranças aparecem travestidas como a solicitação de leitos de UTI, os pedidos de flexibilização das normas de licitações públicas, o embate jurídico sobre a competência legislativa sobre o isolamento social, a busca por uma renda emergencial e tantas outras demandas. Parece que não se cobra nada além das ambições já apresentadas pelo constitucionalismo social.
Os aprofundamentos da crise, no entanto, vão além, chegando até mesmo aos direitos já consolidados no período do constitucionalismo liberal. Ao investigarmos a confusão e violência com que as notícias e informações são propagadas à população nesse período de crise, é colocado diante de nós o direito de imprensa há muito consolidado. A desinformação orquestrada pelo Governo Federal nesse período nos faz lembrar das notícias falsas e a campanha difamatória contra as vacinas da febre amarela no século XX. Questionamos até mesmo se as bases republicanas iniciadas na Constituição de 1891 conseguem se manter de pé após essa crise.
A pandemia nos obriga a questionar a dimensão dos direitos sociais presentes na Constituição de 1988. Até que medida eles estão nos protegendo da catástrofe total e ainda; como estaríamos sem eles? Essas respostas, que devem vir a surgir no horizonte, apontarão para os limites, possibilidades e caminhos que o constitucionalismo contemporâneo deve seguir. É fundamental que os elementos que garantirão essas respostas se façam presentes desde já. Dados sociais, políticos e econômicos precisam ser coletados em grande escala para que a dimensão dos direitos sociais possa vir a ser quantificada com maior qualidade no futuro.
As críticas futuras que a ordem constitucional vigente encarará será pautada em grande parte pela sua competência — ou a falta dela — em lidar com crises estruturais como a que vivemos agora. As reformas constitucionais que virão, bem como toda a transmutação natural que sofre uma constituição ao longo do tempo, serão fortemente influenciadas pelo resultado do teste pelo qual passa o constitucionalismo social brasileiro neste tempo de crise.
Referências
ARRETCHE, Marta. Trinta Anos Da Constituição De 1988: Razões Para Comemorar?. Novos estudos CEBRAP, 2018. 37(3), 395–414
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012. 863 p. ISBN 8539201127.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Cia da Letras, 1996.
RIBEIRO, Darcy — O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Vieira, Oscar Vilhena. Barbosa, Ana Laura Pereira. (2018). Do Compromisso Maximizador À Resiliência Constitucional. Novos Estudos Cebrap, 2018. 37(3), 375–39
Sobre o autor:
Gabriel da Silva Prado é Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador no grupo Direito Constitucional Avançado da USP e membro do grupo de estudos Teoria Geral do Estado Brasileiro na mesma instituição.
O blog da Revista Direito, Estado e Sociedade publica textos de autores convidados. As opiniões expressas nesses posts não representam, necessariamente, a opinião do periódico e de sua equipe editorial.