Pandemia e trabalhadores de plataformas digitais: trabalho e dignidade desprotegidos

--

Por Murilo C. S. Oliveira

Crédito de Imagem: Imagem de Peggy und Marco Lachmann-Anke por Pixabay

Nestes dias pandêmicos, os quem vivem do trabalho estão envoltos em muitas dificuldades e desafios para continuar trabalhando e se proteger do Covid-19. Os trabalhadores que se encontram reconhecidamente sob o manto de proteção legal — assegurados pela qualidade formal de empregados e assim sujeitos à aplicação do Direito do Trabalho — enfrentam o desafio de, abruptamente e sem estrutura ou preparação, engajar-se no teletrabalho ou continuar nos estabelecimentos empresariais com maiores riscos de exposição ao vírus.

Como disposto nas diversas legislações de urgência (MP´s 905, 927 e 936), a saída definida pela política legislativa foi a redução de direitos como suspensão contratual, redução de salários, negociação individual, antecipação de férias, entre outras, inclusive com o “lockdown” das regras constitucionais que exigiam a negociação feita com a participação sindical.

Se isto parece ruim, há um outro cenário muito pior para quem vive do trabalho. Para um outro conjunto de trabalhadores — aqueles que por escolha empresarial das plataformas digitais são formalmente classificados como parceiros e autônomos, a situação se torna muito mais tortuosa, pois não há, a princípio, nem mesmo essa proteção trabalhista “reduzida” pela pandemia.

Motoristas de “aplicativos” da Uber e Cabify ou entregadores da Ifood ou UberEats são exemplos destes trabalhadores que sequer tiveram direito ao auxílio financeiro destinado aos desempregados e demais autônomos, pois a Presidência da República, sob justificativa de falta de fonte de custeio[1], excluiu essas pessoas do conjunto de beneficiários do pagamento dos “seiscentos reais”, também chamado de corona voucher.

A tônica então dos “uberizados[2]” é a total informalidade e desproteção, apesar de estarem na “linha de frente” das ruas em tempos de guerra, prestando um trabalho essencial para a sociedade e assumindo sozinhos os riscos sanitários e econômicos da (falsa) ideia de empresários de si mesmos.

Só este desamparo já contrasta com os fundamentos da ordem jurídica de dignidade e valor social do trabalho e os objetivos da nação que são “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais” e “promover o bem de todos” (vide arts. 1º e 3º da Constituição da República) que se aplicam a todos que são trabalhadores e não apenas aos que são qualificados como empregados.

Por outro lado, a pandemia da Covid-19 ao demandar o distanciamento social acelera o processo em curso de digitalização de trabalho, expandido os sistemas de trabalho remoto e, concomitantemente, acelerando a “transformação digital” das empresas, dando maior visibilidade àquelas estruturadas em meios tecnológicos como são as plataformas digitais de trabalho. Um relatório feito pela Google e pela IAT[3] apresenta um prognóstico — “tudo se torna virtual” — indicando a aceleração da digitalização no campos do trabalho, educação e até de cultos religiosos, a consolidação da confiança no meio digital, a exemplo das compras no e-commerce e a demanda de trabalho via plataformas digitais, mas também sinaliza o desemprego, empobrecimento e concentração de renda.

O olhar para essas novas tecnologias e inovações nos modelos empresariais capta que, cada vez mais, as plataformas digitais de trabalho se apresentam como novo modelo de negócios e ascendem em diversos setores econômicos. Elas trazem grande eficiência tecnológica e econômica, causando disrupções[4] nas formas de se relacionar, contudo, para os trabalhadores, ocasionam muita precariedade social e, nisto são continuidades do processo recorrente de precarização do trabalho em curso desde o pós-fordismo.

A proliferação das plataformas digitais de trabalho vem corroendo as configurações do Direito do Trabalho[5]. O velho dilema trabalhista fundante retorna como tragédia: milhões de trabalhadores vendem sua força de trabalho, inclusive em extensas jornadas, em troca de parca remuneração, enquanto milhões são apropriados pelos titulares de plataformas digitais, tudo sob a forma jurídica de “parceria” numa relação de trabalho autônomo.

Particularmente no caso dos trabalhadores das plataformas sob demanda[6], os motoristas e entregadores são classificados por estas empresas como parceiros e assim autônomos. Há bastante controvérsia nesta qualificação e definição de autonomia, tendo em vista que algumas destas plataformas estabelecem métodos de direção, controle e apropriação do resultado econômico do trabalho alheio.

O novo arranjo da organização econômica atual — ora propagandeado como economia do compartilhamento, ora acusado de economia do “bico” (gig economy) — cria um mercado de trabalho em expansão apto a conferir alternativa econômica aos desempregados e também capaz de absorver os tempos ociosos, ou mesmo o período de repouso dos trabalhadores ocupados. Esse trabalho por “parceria” dos aplicativos ascende no mercado de trabalho como nova tendência de produtividade e organização laboral, sem a (tida como) “custosa” proteção dos direitos trabalhistas. Com a pandemia e o distanciamento social, as plataformas de entregas ou trabalho a domicílio irão expandir notoriamente sua atuação.

Entretanto, os trabalhadores destas plataformas continuam sendo enquadrados, sob o prisma formal-contratual, na posição jurídica de parceiros autônomos. São tidos como livres para se ativar ou desativar da plataforma no horário de sua escolha, contudo por ganharem tão pouco são impelidos sempre a trabalhar o máximo da jornada fisicamente possível. Curioso que na condição de autônomos, não têm liberdade para fixar o preço de seu trabalho, recusar clientes ou mesmo avaliar seu parceiro, a plataforma digital.

As circunstâncias fáticas dos trabalhadores de plataformas eletrônicas se afastam-se da clássica situação de subordinação jurídica, embora seja relativamente fácil a visualização de um poder fiscalizatório e disciplinar ou mesmos indícios de controle por nota mínima e recursos de gamificação, numa subordinação por algoritmo e escancaram uma clara condição de hipossuficiência, bem expressada nos baixos salários e longas jornadas[7].

Agrava ainda mais essa situação de precariedade, a transferência os riscos da atividade para os trabalhadores. Nos casos das plataformas de entrega, os trabalhadores são responsáveis pela aquisição e manutenção dos veículos, despesas de combustível, impostos sobre o veículo, seguro por acidente, além de outros, sofrendo ainda os riscos e custo econômico da ociosidade, visto que estão disponíveis para trabalhar e não receber pelo tempo à disposição. As inovações, sempre bem-vindas, devem propiciar concomitantemente vantagens aos envolvidos, sob pena de se tornarem expedientes criativos da conhecida exploração do homem pelo homem.

Justamente estes trabalhadores das plataformas que continuam nas ruas em tempos de pandemia ficam, então, tanto excluídos do Direito do Trabalho[8], como do auxílio financeiro concedido aos demais autônomos e desempregados. Pela necessidade econômica, continuam indo as ruas, vendendo seus serviços neste contexto de “guerra” contra a pandemia, assumindo todo o ônus da autonomia de si, especialmente o risco da não obtenção de renda e de contrair o vírus pandêmico, no entanto sem nunca ter gozado do bônus — nem nos tempos anteriores de pujança e expansão das plataformas — desta atividade na economia digital.

Sem regulação e diante das dúvidas e controvérsias se o trabalho nessas plataformas seria controlado e dependente, sindicatos profissionais e o Ministério Público do Trabalho demandam na Justiça do Trabalho medidas urgentes de proteção sanitária e auxílio financeiro aos trabalhadores em plataformas como a Uber, Cabify e Ifood em diversos Estados.

Estas decisões da primeira instância foram bastante diversas em seus conteúdos, naturalmente diante das circunstâncias de cada caso concreto e dos tipos de pedidos feitos. Em termos gerais, as decisões dos juízes trabalhistas garantiram proteção sanitária e auxílio financeiro ou salário.

A liminar de São Paulo concedida cobra a Cabify (processo 1000531–71.2020.5.02.0007), estabeleceu o fornecimento de álcool-gel, lavatórios, máscaras, luvas, higienização dos veículos e e auxílio financeiro (1 salário mínimo por mês para quem contraiu a Covid). A liminar do Ceará (0000295–13.2020.5.07.0003) determinou pagamento de salário por tempo à disposição ou trabalhado (“remuneração mínima por hora efetivamente trabalhada ou à disposição” com base no salário mínimo) e para aqueles com Covid ou suspeita, além de medidas sanitárias (entregas gratuitas de Equipamentos de Proteção Individual, tais como máscaras cirúrgicas e preparação alcoólica a 70%).

No entanto, a mais alta corte trabalhista, o Tribunal Superior do Trabalho — TST, suspendeu, em um processo de Minas Gerais (1000504–66.2020.5.00.0000), a imposição de adoção de medidas sanitárias pelo Uber em favor de seus motoristas, com base em questões processuais e na dificuldade de se encontrar alguns bens de proteção individual.

Este dissenso de julgamentos sobre situações assemelhadas revela que, até no campo judicial, há dificuldades para se assegurar a proteção aos trabalhadores de plataformas, ainda que eles sejam considerados como autônomos. Simples medidas sanitárias, como fornecimento de álcool-gel, foram derrubadas pelo TST, apesar do risco da continuidade do trabalho na pandemia por estes motoristas ou entregadores.

Extrai-se, então, que proteção sanitária e a segurança econômica destes trabalhadores recairia na construção pela luta política sindical — via negociação coletiva com recorrência a movimentos grevistas — ou deveria ser transformada em lei. No entanto, há repertório de leis e da própria Constituição que permite, por simples interpretação, conceder dignidade a estes trabalhadores, sem se recair em “canto de sereia”[9].

A concretização dos ditames constitucionais de proteção e dignidade a todo trabalhador impõe que o labor destes “uberizados” seja envolto de um mínimo de dignidade, materializada em uma segurança sanitária mínima (álcool-gel, higienização, luvas, máscaras e entre outros) e uma segurança financeira (salário mínimo ou auxílio financeiro). Isso constituiria um mínimo civilizatório de uma sociedade que é realmente solidária para com esse trabalhador que continua na trincheira das ruas, desprotegido e abandonado à própria sorte, em tempos de distanciamento social.

Referências

[1] Vide https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/bolsonaro-barra-motoristas-de-aplicativo-e-outras-categorias-em-vetos-a-ampliacao-do-auxilio-emergencial.shtml

[2] Uma leitura jornalística e crítica da Uberização como crítica à ideia de economia do compartilhamento pode ser encontrada em: SLEE, Tom. Uberização: A nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017.

[3] Google e IAT. Coronavírus: o mundo nunca mais será o mesmo. Disponível em< https://www.sincovaga.com.br/wp-content/uploads/2020/05/1_5017503098675921079.pdf>. Acesso em 21.05.2020.

[4] Uma crítica a ideia de disrupção destas plataformas pode ser encontrada em: TEODORO, Maria Cecília Máximo; DA SILVA, Thais Claudia D’Afonseca; ANTONIETA, Maria. Disrupção, Economia Compartilhada e o fenômeno Uber. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 20, n. 39, p. 1–30, abr. 2017. ISSN 2318–7999. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/14661/0>. Acesso em: 07 fev. 2019

[5] SILVA, Sayonara Grillo. O Brasil das Reformas Trabalhistas: Insegurança, Instabilidade e Precariedade. In: SILVA, Sayonara Grillo; EMERIQUE, Lilian; BARISON, Thiago. (Org.). Reformas Institucionais de Austeridade, Democracia e Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2018. Disponível em https://www.academia.edu/40538867/Reformas_Institucionais_de_Austeridade_Democracia_e_Rela%C3%A7%C3%B5es_de_Trabalho

[6] DE STEFANO, Valerio. (2016). The Rise of the “Just-in-Time Workforce”: On-Demand Work, Crowdwork, and Labor Protection in the “Gig Economy”. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/305163826_The_Rise_of_the_Just-in-Time_Workforce_On-Demand_Work_Crowdwork_and_Labor_Protection_in_the_Gig_Economy .

[7] OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. O retorno da dependência econômica no direito do trabalho. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 79, n. 3, p. 196–215, jul./set. 2013, disponível in https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/50179.

[8] ASSIS, Anne; COSTA, Joelane; OLIVEIRA, Murilo. O Direito do Trabalho (des)conectado nas plataformas digitais. Revista Teoria Jurídica Contemporânea. v.4, p.246–266, 2019. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/view/24367

[9] Vale a leitura do texto “O Romantismo e o canto da sereia: o caso Ifood e o Direito do Trabalho” de Rodrigo Carelli. Disponível em https://rodrigocarelli.org/2020/03/04/o-romantismo-e-o-canto-da-sereia-o-caso-ifood-e-o-direito-do-trabalho/

Sobre o autor:

Murilo C. S. Oliveira é Juiz do Trabalho Substituto na Bahia, Especialista e Mestre em Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR, Pós-doutorando na UFRJ e Professor Associado da UFBA.

O blog da Revista Direito, Estado e Sociedade publica textos de autores convidados. As opiniões expressas nesses posts não representam, necessariamente, a opinião do periódico e de sua equipe editorial.

--

--

Revista Direito, Estado e Sociedade
Revista Direito, Estado e Sociedade

Written by Revista Direito, Estado e Sociedade

Revista organizada, desde 1991, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, com o objetivo de divulgar intervenções interdisciplinares e inovadoras.

No responses yet