O patrocínio de aplicativos pode ser “ardiloso” em tempos de crise? Um lembrete à falsa percepção de gratuidade

Por Milena Márcia de Almeida Alves

Imagem de relexahotels por Pixabay

Navegar por aplicativos “sem pagar nada” é, de longe, considerado por muitos internautas como uma benesse. Por que, então, algo tão apreciado pelos usuários da rede pode ser lido como “ardiloso” quando a sociedade está imersa em crise(s)? É esta a pergunta que se buscará responder.

Por trás do zero-rating

Ao contratar um pacote de serviços de telefonia, não é incomum que o usuário se depare com aplicativos que podem ser utilizados sem comprometer a franquia de dados contratada. É o caso, por exemplo, do Whatsapp, aplicação de mensagens que, em pacotes de várias operadoras, é “livremente” usada pelo consumidor, sem que isso acarrete o consumo de seus famosos bytes.

Em suma, caso tenha contratado 500MB de internet, por exemplo, o consumidor que só utilizar o Whatsapp poderá continuar com os mesmos 500MB — basta que isso esteja previsto no contrato firmado com a operadora. Tal “truque mágico” é, em verdade, uma prática negocial de patrocínio de aplicativos conhecida como zero-rating [1].

A situação já é famosa entre os internautas, mesmo que nem todos saibam precisar o nome do instituto. Acontece que, quando o patrocínio é colocado em prática, a necessidade de manutenção de um pacote de dados ativo com a operadora contratada ocasiona uma “falsa percepção de gratuidade” que soa um pouco ardilosa, sobretudo em momentos de intensa vulnerabilidade por parte dos consumidores, como é o caso das crises. Entendamos.

Isolamento social no Brasil e os aplicativos Coronavírus-SUS e Auxílio Emergencial

Em razão das normativas de restrição à aglomeração de pessoas por conta da pandemia do novo coronavírus, dados de 22 de março 2020 demonstraram um percentual de isolamento social de 62,2% no Brasil, tendo caído nos meses subsequentes, aproximando-se de 50% (INLOCO, 2020).

Como era de se esperar, em razão da “hiperconexão”, nova forma de relação com o mundo, compreendida por publicitários e comunicadores como característica da atual geração (SANTOS; MALDANER, 2013, p.5), o cenário de distanciamento físico entre as pessoas acentuou a importância da internet. Não só como ferramenta de comunicação, mas também de trabalho, entretenimento, sala de aula e até mesmo manutenção de vínculos pessoais.

Nesse quadro, empresas brasileiras do setor de telecomunicações, além de terem firmado “Compromisso Público para a Manutenção do Brasil Conectado” (ANATEL, 2020), tornando pública a promessa de manter os serviços funcionando durante a pandemia, também assumiram iniciativas de três tipos: para manutenção do acesso à internet; para manutenção do serviço, atendimento e TV por assinatura; e para disponibilização de conteúdo gratuito (IDEC, 2020).

No que diz respeito especificamente à “disponibilização de conteúdo gratuito”, quatro das maiores operadoras brasileiras — Claro/Net, Oi, TIM e Vivo — celebraram parcerias com o Ministério da Saúde e com a Caixa Econômica Federal para que a população tivesse acesso, sem comprometer a franquia de dados, aos aplicativos Coronavírus-SUS e Auxílio Emergencial (IDEC, 2020).

Os apps “Coronavírus-SUS” e “Auxílio Emergencial” de fato têm se mostrado muito oportunos à crise de saúde. Através deles, a população, além de se manter informada sobre a pandemia, bem como sobre os cuidados a serem tomados para combatê-la, também teve acesso a uma interessante ferramenta de checagem de fake news [2] — no caso específico do aplicativo Coronavírus-SUS — e ao auxílio financeiro (denominado “auxílio emergencial”) criado por meio da Lei nº 13.982, de 02 de abril de 2020 (BRASIL, 2020) [3].

Em verdade, dados quantitativos apontam que o aplicativo Coronavírus-SUS foi baixado pelos usuários mais de 6,3 milhões de vezes (FRASÃO, 2020), somente no período de fevereiro a junho de 2020, enquanto que o app Auxílio Emergencial, ainda no mês de abril (portanto, no mesmo mês em que entrou em vigor a lei que criou o auxílio) alcançou a soma de 50,3 milhões de downloads (G1, 2020).

Isso significa que os serviços constantes nos aplicativos foram oferecidos gratuitamente aos brasileiros, como uma forma de política social em meio à crise acentuada pela pandemia do novo coronavírus?

Aí está uma importante pergunta.

Bem, para que possa navegar pelos aplicativos oferecidos em zero-rating (isto é, os aplicativos patrocinados), é necessário que o usuário possua acesso à internet por meio de rede Wi-Fi ou que, no caso de planos pré-pagos, detenha um pacote de dados ativo com sua operadora.

Portanto, o pacote contratado não pode ter sido “zerado” pelo usuário, muito embora a utilização do aplicativo não vá levar embora os seus bytes, por conta do zero-rating.

Nesse ponto, não se pode esquecer que, embora três em cada quatro brasileiros possua acesso à internet, 99% desse quantitativo acessa a rede através dos smartphones com predominância do uso de pacotes básicos dos planos pré-pagos (SILVEIRA, 2017), planos estes que, por sua própria natureza descontínua (são ativados após a inserção de créditos no celular), nem sempre estão ativos (VALENTE, 2020).

Assim, vão-se os créditos do celular (o que, em termos técnicos, representa o consumo total da franquia de dados) e, com eles, o “livre” acesso aos aplicativos patrocinados. Ou seja, é importante ter em mente que, mesmo após ter baixado os aplicativos no celular, nem toda a população brasileira tem acesso irrestrito a eles.

O “Auxílio Emergencial”, por exemplo, sequer permite a realização do login do usuário na ausência de internet (Wi-Fi ou pacote de dados ativo), o que vai na contramão do que seria o “acesso irrestrito”.

A ideia não é criticar cegamente o patrocínio de aplicativos. Mesmo porque, durante a pandemia de Covid-19, que atingiu o mundo globalizado de uma maneira sem precedentes, o acesso patrocinado a aplicativos (não só os dois citados, mas também a aplicativos de notícias, educação e entretenimento) certamente beneficiou uma parcela da população, que foi justamente aquela que manteve o pacote de dados ativo com a operadora.

Logo, ao tempo em que comemoramos o zero-rating, devemos apenas fugir da falsa percepção de gratuidade — ou até mesmo de “caridade” no momento de pandemia — que ele nos traz, pois é preciso não esquecer que o acesso à internet por meio de celulares ainda é bastante precário entre os brasileiros mais pobres, uma vez que em tal camada da sociedade predomina o uso de planos pré-pagos (SILVEIRA, 2017), os quais nem sempre estão ativos — e, quando não estão, não há como acessar os aplicativos patrocinados. Para ativar, é preciso pagar.

Na linha do que foi dito, “vão-se os créditos, vai-se o patrocínio”. Este é o lembrete à falsa percepção de gratuidade.

Notas
[1] Com maior rigor técnico, o conceito de zero-rating pode ser delimitado por um gênero de práticas comerciais de “patrocínio de aplicativos”, patrocínio este que faz com que o uso dos apps não seja contabilizado no pacote de dados contratado pelo usuário.
[2] Como o aplicativo Coronavírus-SUS confere acesso direto ao site oficial do Ministério da Saúde, neste último encontra-se disponível um número de Whatsapp para o qual os internautas devem enviar informações que encontrem circulando pela internet acerca da pandemia, a fim de que uma equipe especializada responda, via Whatsapp, se a informação é verdadeira ou trata-se de “fake news”. Daí a grande importância da ferramenta.

Referências

ANATEL — Agência Nacional de Telecomunicações. ANATEL e setor de telecom firmam compromisso público para manter Brasil conectado. Brasília: ANATEL, 14 abri. 2020. Disponível em: https://www.anatel.gov.br/institucional/component/content/article/171-manchete/2538-anatel-e-setor-de-telecom-firmam-compromisso-publico-para-manter-brasil-conectado. Acesso em: 1 jul. 2020.

BRASIL. Lei Nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, para dispor sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Brasília: Presidência da República, 02 abr. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm. Acesso em: 10 jul. 2020.

FRASÃO, Gustavo. Google apoia Ministério da Saúde na divulgação do aplicativo Coronavírus-SUS. Agência Saúde, Ministério da Saúde, Brasília, 5 jul. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/google-apoia-ministerio-da-saude-na-divulgacao-do-aplicativo-coronavirus-sus. Acesso em: 12 jul. 2020.

G1. Auxílio emergencial: Caixa diz que já pagou R$ 16,3 bilhões para 24,2 milhões de brasileiros. G1, 20 abri. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/20/auxilio-emergencial-caixa-diz-que-ja-pagou-r-122-bilhoes-para-179-milhoes-de-brasileiros.ghtml. Acesso em: 10 jun. 2020.

IDEC — Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Internet e pandemia: ações de operadoras são insuficientes. IDEC, 05 mai. 2020. Disponível em: https://idec.org.br/noticia/acesso-internet-acoes-de-operadoras-sao-insuficientes-em-tempos-de-pandemia. Acesso em: 7 ago. 2020.

INLOCO. Mapa brasileiro da COVID-19. Recife: Inloco, 2020. Disponível em: <https://mapabrasileirodacovid.inloco.com.br/pt/>. Acesso em: 6 jul. 2020.

SANTOS, Caroline de Oliveira; MALDANER, Nilse Maria. O Jovem Brasileiro na Sociedade Contemporânea: um desafio para a Comunicação Publicitária. In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO SUL, 14., 2013, Santa Cruz do Sul. Anais […]. Santa Cruz do Sul: Intercom — Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2013, p. 1–15. Disponível em: https://www.portalintercom.org.br/anais/sul2013/resumos/R35-0781-1.pdf. Acesso em: 2 jul. 2020.

SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Uma internet mais cara para quem é mais pobre. Entrevista concedida a domtotal.com, 26/02/2017. Domtotal.com. Disponível em: https://domtotal.com/noticia/1128427/2017/02/uma-internet-mais-cara-para-quem-e-mais-pobre/. Acesso em: 28 ago. 2020.

VALENTE, Jonas. Brasil tem 134 milhões de usuários de internet, aponta pesquisa — a maioria acessa a internet pelo celular. Agência Brasil, 26 mai. 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-05/brasil-tem-134-milhoes-de-usuarios-de-internet-aponta-pesquisa. Acesso em: 6 jun. 2020.

O presente texto inspira-se em pesquisas realizadas no bojo de Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação em Direito da UFPE, sob a orientação da Prof. Dra. Fabíola Albuquerque Lôbo, oportunidade em que se investigou a temática da neutralidade da rede — e, com ela, o patrocínio de aplicativos.

O blog da Revista Direito, Estado e Sociedade publica textos de autores convidados. As opiniões expressas nesses posts não representam, necessariamente, a opinião do periódico e de sua equipe editorial.

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Revista Direito, Estado e Sociedade

Revista organizada, desde 1991, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, com o objetivo de divulgar intervenções interdisciplinares e inovadoras.