O enfrentamento à pandemia e a queda da última máscara liberal do bolsonarismo
Por Vinícius Silva Alves
Nos últimos dias, o confronto entre as propostas de isolamento vertical e horizontal reacendeu uma disputa narrativa sobre o papel do Estado, que se acirrou desde o último ciclo eleitoral. Para muitos, estes caminhos evidenciariam perspectivas mais ou menos liberais, associadas, respectivamente, a intervenções de menor ou maior intensidade por parte do Estado.
De um lado, uma parcela considerável de agentes políticos, com destaque para governadores, prefeitos, deputados e o próprio ministro da saúde, recomendaram fortemente ações de isolamento social, articulando inclusive projetos de renda mínima para auxiliar temporariamente pessoas em situação de vulnerabilidade. Seguindo as determinações da Organização Mundial de Saúde e amparadas na recente experiência de alguns países no enfrentamento da pandemia, essas medidas foram bem recebidas pela maioria da população brasileira, de acordo com pesquisas de opinião pública.
De outro lado, setores do empresariado, além de alguns jornalistas e pesquisadores buscaram, de maneira legítima, estimar os possíveis efeitos de uma crise econômica sobre as empresas e o empobrecimento da população brasileira. Os mais exaltados, entre eles alguns grandes empresários que se associaram a Bolsonaro desde as eleições de 2018, gravaram vídeos e divulgaram mensagens sugerindo que a crise econômica poderia ser tão ou mais devastadora que a pandemia. Para esses, portanto, a população deveria retomar suas atividades cotidianas, isolando apenas pessoas nos grupos de risco — proposta que não está em discussão no âmbito científico dada a sua inviabilidade.
É importante relembrar que, desde as eleições de 2018, Jair Bolsonaro tenta sustentar um discurso que o identifique como “liberal” — contrariando sua atuação pregressa como deputado federal em que defendeu pautas estatizantes. No entanto, cabe retomar a origem do conceito de Estado liberal para entendermos como, no mundo em que vivemos, as palavras parecem se contorcer para se encaixar na realidade desejada por alguns agentes políticos.
De uma maneira geral, o formato de Estado como conhecemos hoje tem origem na ideia de que um pacto celebrado entre indivíduos fez surgir um arranjo de regras dedicadas à proteção de liberdades individuais, com destaque para o direito à vida e a propriedade.
Quando discutimos sobre a origem do Estado como organização política de um povo sobre um território, utilizamos frequentemente a noção de contrato social. De forma simples, podemos pensar que as pessoas, individualmente consideradas, não possuem recursos suficientes para a preservação de suas liberdades fundamentais, motivo pelo qual renunciam a uma parcela de sua vontade soberana em favor do estado.
Recorremos à noção fundamental que fez nascer o Estado liberal para pontuar que não existe nada de liberal no pensamento que circulou, sem maiores constrangimentos, entre setores que apoiavam o fim do isolamento para minimizar os efeitos de uma crise econômica. De acordo com esse pensamento, a vida de milhares de pessoas poderia ser barganhada em favor de uma minimização dos efeitos de uma inevitável crise econômica.
Alguns ainda lamentaram que a pandemia teria interrompido uma retomada do crescimento econômico sustentada pelo ministro da economia, ponto bastante questionável para dizer o mínimo. Seja como for, setores que reivindicam o título de liberais apresentaram suas propostas de fim do isolamento como forma de minimizar os efeitos da crise.
É importante esclarecer que estes grupos, bastante próximos do presidente e de sua equipe econômica, patrocinaram um discurso que não se situa na órbita do pensamento liberal ao qual gostam de ser associados. Naturalizar um debate em que vidas poderiam ser sacrificadas para a minimização dos incontornáveis efeitos de uma pandemia sobre a economia escancara uma lógica que não faz jus nem a um formato mínimo de estado liberal.
Para esses liberais brasileiros, a propriedade — algo que não existe por si só — seria uma liberdade inalienável, que deveria ser fortemente protegida pelo Estado, enquanto a vida de alguns poderia ser oferecida como uma espécie de sacrifício coletivo, de maneira surpreendente até mesmo para alguém que leva a sério o liberalismo.
As soluções para o enfrentamento da crise são complexas e escapam dos limites desta breve reflexão, mas certamente o Estado não pode se eximir da responsabilidade de oferecer ajuda a empresas e pessoas, o que sempre aconteceu em situações de crises extremas no passado. Neste sentido, chama-se atenção para o inconciliável desencontro entre as soluções dos que se apresentam como liberais e a essência do pensamento filosófico que fez surgir o Estado liberal.
Naturalizar a barganha de vidas proposta por parte do empresariado brasileiro, quase em uníssono com o presidente da república, deveria servir de uma vez por todas para delimitarmos o que faz ou não parte do pensamento liberal. Com alguma dose maior de ambição, poderíamos aproveitar a oportunidade também para ampliar o debate sobre os limites do espectro democrático da política brasileira, algo que o país reluta em estabelecer desde a transição democrática.
Em um país em que o arranjo institucional proíbe que o Estado condene o indivíduo à morte mesmo diante da violação de alguma regra, seria razoável entender como democráticas decisões políticas que pudessem condená-lo a tal destino? Poderia algo completamente alheio à ação individual das pessoas legitimar uma decisão política que contraria evidências científicas e justifica a esquiva em oferecer-lhes proteção?
É muita generosidade chamar de liberal o pensamento de quem verbaliza para a posteridade algumas sugestões de políticas que violam a essência do liberalismo, a proteção das liberdades individuais fundamentais, sendo a vida a mais evidente delas. Com alguma dose de bom senso, liberal poderia ser considerado aquele que, diante de crises extremas, reconhece a necessidade temporária de um papel de maior protagonismo do Estado no enfrentamento dos problemas e na proposta de soluções para pessoas e empresas.
Mas é importante chamar as coisas pelo nome, por mais óbvio que isso pareça. A aceitação implícita, ou nem tanto assim, de que a vida de algumas pessoas, especialmente as mais vulneráveis, não está sob proteção do Estado pode encontrar definição melhor em outro substantivo ou adjetivo no dicionário. O que não podemos é qualificar apropriadamente como liberal o pensamento de quem abre mão, com naturalidade e sem grandes constrangimentos, do papel do Estado em resguardar a vida das pessoas.
A farsa do liberalismo à brasileira, abraçada pelos adeptos do bolsonarismo, esfacelava-se aos poucos diante de todos. Na tentativa de sobreviver às críticas que surgiam por conta das investidas do governo contra direitos conquistados ao longo da história democrática, escondeu-se sob a máscara do livre mercado ou sob a alcunha de “liberal na economia e conservador nos costumes”. Negociaram liberdades fundamentais até chegarem nos limites explícitos da mais crítica de todas: a vida. Se havia ainda alguma máscara que disfarçava as intenções do governo e lhe dava aparência de liberal, hoje não há mais.
Referências
Hobbes, Thomas. Leviatã. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Locke, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. 4ª ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006.
Montesquieu, Charles de Secondat. O espírito das leis. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Rousseau, Jean-Jacques. Do contrato social: princípios do direito político. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
Sartori, Giovanni. Elementos de teoria política. Madrid: Alianza Editorial, 2012.
Weffort, Francisco Correa. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2001.
Sobre o autor: Vinícius Silva Alves é Doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador de pós-doutorado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
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