O Covid-19 e o processo educacional brasileiro

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Por Antonio Carlos Coelho

Crédito de Imagem: Imagem de Monoar Rahman Rony por Pixabay

Em que momento, o Homo Sapiens, a partir de sua intimidade e de sua cultura, cria códigos e convenções sociais que possibilitem estruturar regras que favoreçam o agir humano? O que faz o Homo Sapiens reagir ante as atipicidades apresentadas a sua espécie? O que torna o Homo Sapiens diferente entre as milhares de espécies no planeta? Diante desta pandemia e do intricado contexto em que se encontra a humanidade, buscaremos reflexões necessárias nos tempos em que vivemos, por meio de um aporte da teoria social, conjecturando acerca dos impactos causados pela atual pandemia de COVID-19 em nosso processo educacional.

O que somos, ponderamos e como atuamos, enquanto espécie, é em grande parte oriundo de um contexto de distintos movimentos sociais que, ao longo da história, desencadeou um processo que favoreceu ao Homo Sapiens evoluir erigido pelos impulsos sociais.

A humanidade, portanto, na sua caminhada evolutiva, sempre buscou formas de se adaptar e modificar o meio em que vive e, pelas ferramentas linguagem e a escrita, moldou relações sociais, estruturando as sociedades humanas, que retratam os modos de ser e de estar no ambiente histórico e social destes indivíduos, de acordo com a sua evolução cognitiva e o meio em que estão inseridos.

O Homo Sapiens, a partir de sua experiência e de suas ações sobre o mundo, interpreta e narra a realidade ao seu nível racional, configurando assim um habitat além da materialidade que, permeado por uma práxis social, promove uma concentração sobre si, estabelecendo representações refletoras de seus mitos, lendas, histórias, crenças, valores sociais e cultos religiosos, estabelecendo deste modo uma identidade. Geertz (1973, p. 33) entende estas reformulações culturais como um processo em que “[…] todos nós começamos com um equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”.

A diversidade cultural, produzida a partir desta experiência, apresenta um patrimônio que integra a espécie humana ao propor uma unicidade como um direito básico de cada grupo, mas, esta unicidade não exclui a pluralidade e o diferente, pelo contrário, afiança uma coadjuvação recíproca de valores culturais que possibilita um intercâmbio entre os povos, abre novos horizontes possibilitando uma troca de experiência entre os envolvidos e promovendo influência mútua e alterações na estrutura social.

Exemplo deste modelo, no presente cenário e no contexto da globalização, distintos grupos sociais vivenciam este processo de mudanças, marcado por uma livre circulação de indivíduos, de ideias, de cultos religiosos e de percepções distintas de cultura que evidencia um diálogo multicultural permeado, não só pelos objetos que os representam e pelos seus sistemas simbólicos, mas, que se sobressai por regiões de pensamento cada vez menos provinciano em favor de uma racionalidade mais pluralista ou vice-versa. Neste sentido, a cultura moderna, perante o trânsito global e suas transformações, em suas mais distintas instâncias, mesmo que independentes entre si acabam se interagindo.

Ferreira (2017, p. 1) defende a ideia de que “é algo surpreendente e sem precedentes o quanto mudamos na forma de comunicar, relacionar, produzir, consumir e se informar”, o que demonstra uma emancipação em um período histórico, entreposto por uma conscientização racionalizada por uma presença acentuada da informação. Para Foucault (1977, p. 8) “estamos historicamente consagrados à história, à paciente construção de discursos sobre os discursos, à tarefa de ouvir o que já foi dito”.

Do mesmo modo, os tempos do atual milênio protagonizam ainda, um fascínio direcionado para um devir utópico da informatização que converge para o “entorno simbólico e de socialização de crianças, adolescentes, jovens e adultos” (LECLERC, 2015, p. 359), alterando continuamente diversos processos que submergem com a vida individual e coletiva que, por sua vez, configura a denominada “sociedade de informação” (WERTHEIN, 2000), como um do novo paradigma com novas exigências em termos de formação educacional.

Estas demandas exigem do meio de formação educacional, diante destas mudanças transformadoras do cotidiano, uma análise mais acurada do seu processo ensino-aprendizagem diante deste novo paradigma, de uma sociedade hiper-conectada às redes de comunicações de massa.

Observa-se que o sistema educacional moderno tem como objetivos e métodos orientações voltados para o desenvolvimento cognitivo “dos estudantes, preparando-os para a escalada da pirâmide educacional e para a competição no mercado de trabalho. As escolas que oferecem este tipo de educação incorporam as novas metodologias de ensino, mas somente na medida em que elas contribuam para aumentar sua eficácia”. (VALE-HÖLLINGER, 2003, p. 241).

Deste modo, o processo ensino-aprendizagem, abordados em nossos estabelecimentos educacionais, responsável por nortear às competências e habilidades visando um aperfeiçoamento em cada nível educativo, não está respondendo a este estímulo e nem contribuindo para uma efetivação de direitos fundamentais para a edificação de uma sociedade justa, solidária e igualitária. O campo atual do ensino brasileiro apenas replica o individualismo para seus alunos que, associado ao consumismo excessivo reforça a falta de ética pessoal.

O que se percebe nesta sociedade informatizada, instruída a partir de uma educação moderna, a busca por uma verdade simplesmente se corrompe. Salienta Libanio (p. 93–99) que "as notícias veiculadas não passeiam pelo campo da verdade, do bem, da honestidade, da justiça, mas, […] sobretudo pelos interesses comerciais que financiam a mídia. […] A sociedade industrial capitalista tem mostrado pouco cuidado com as pessoas, tornando-as objeto de consumo".

Uma rotina inflada pela excessiva gama de informações, muita das vezes desnecessárias, coloca a humanidade dentro de uma ciranda de consumo de bens materiais, de produção de conteúdo, de absorção de informações, que patrocinadas pelos meios de as produzem, e a posteriori, reproduzidas pelos ouvintes como sendo uma verdade absoluta.

O que nos leva a entender que este método de ensino não está favorecendo o pleno desenvolvimento dos estudantes, mas apenas, uma educação de treino e não de formação. Acrescenta-se também Bittar (2008, p. 313) que "todo projeto educacional induz certos valores, e não há educação isenta, desvios podem ocorrer, por exemplo, aqueles que induzam ao fortalecimento de uma idéia de coletivo que sufoca a autonomia individual, ou ainda, aqueles que priorizam a formação técnico-operacional e reificadora da consciência, quando se nega, ao mesmo tempo, a formação ampla, crítica e humanística. Se a educação pode ser responsável por forjar consciências e moldá-las conforme conveniências políticas, também a educação passa a ser responsável politicamente pelos resultados que se tem na articulação da vida social. Aqui se torna, ainda uma vez, de fundamental importância distinguir educação como formação e educação como treinamento".

A educação moderna como preparadora da sociedade da informação, ainda não foi capaz de permitir um desenvolvimento humanizado e próximo, apenas continua a treinar e a capacitar sujeitos úteis e capazes operacionalizar sistemas complexos, dentro de uma tecnologia digitalizada e eficiente para produção, ou seja, “a sociedade industrial capitalista tem mostrado pouco cuidado com as pessoas, tornando-as objeto de consumo”. (LIBANIO, 2015, p. 99).

A própria formação continuada, financiada por bolsas de estudos que propõem incentivar a participação de educadores (as) aprimorando o desenvolvimento de capacidades e habilidades, tornam-se uma falácia, pois, muitos apenas utilizam esta formação continuada para enriquecer o Lattes ou promoção financeira, não amalgamando no seu dia-a-dia os ensinamentos absorvidos permanecendo na mesmice forma de ensinar a sua disciplina.

Este processo de treinamento disfarçado de formação, entendendo-o como progresso, constante nos diversos níveis de ensino, está reduzido à mera catequização social em que o ideal “é, essencialmente, moldar os indivíduos de acordo com um modelo condizente com as gerações e de regras já elaborados, cuja aprendizagem é imposta através da memorização e da obediência”. (PIAGET, 1975, p. 59).

Segundo Bittar (2008), progresso não pressupõe desenvolvimento e avanço no processo educacional, devemos, pois desmitificar esta ideia. Educar, para o autor, é formar, é preparar para um direcionamento e desenvolvimento de qualidades, habilidades que não se pode aceitar com um sentido educar na forma de treinamento, algo que acontece em nossos bancos escolares.

De acordo com Vale-Höllinger (2003, p. 241–242), este processo educacional "cria e controla as regras de conduta; as crianças aceitam, obedecem, introjetam regras sem que lhes seja dada a oportunidade de questionamento, critica, negação das regras impostas e construção de regras alternativas […], deste modo, centram-se na transmissão de conhecimentos e de regras já elaborados, cuja aprendizagem é imposta através de memorização e da obediência".

Não se propõe dissociar educação de tecnologia, mas, educar não para a tecnologia e sim para a formação de uma cidadania envolvida com noção de direitos humanos aberta à diversidade, à laicidade e a um pluralismo cultural de gênero e religioso, com ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, como resposta à intolerância que se observa nos dias atuais.

Seguindo o que prescreve a nossa Carta Maior no seu inciso I do Art. 3º visa “[…] — garantir o desenvolvimento nacional” e o inciso II do Art. 4º manter a“[…] II — prevalência dos direitos humanos”, estes princípios estão de fato implícitos em uma forma de governo participativa de seu povo.

Deste modo uma educação fora desta visão da Carta Maior Brasileira e que “não seja desafiadora, […] que não prepare para a mobilização, que não instrumente a mudança, que não seja emancipatória, é mera fábrica de repetição das formas de ação já conhecidas”. (BITTAR, 2008, p. 315).

A reflexão acerca dos impactos causados pela atual pandemia de COVID-19, que apresento envolve o ensino como de formação em que os direitos humanos devam ser exercidos na sua plenitude, humanizando e formando cidadãos capazes de entender que fugir de assuntos como: politica, futebol e religião é um equívoco.

O progresso pessoal não pode ser regido pelos bens materiais ou por conhecimentos rasos de uma cultura “Fake News”. A busca da formação educacional, alicerçada em meios digitais e outros complementos, é universalização do ser humano, tornando-o singular e diverso.

Na presente pandemia e em uma análise da atual situação brasileira, o sistema educacional deveria promover uma autocrítica de seu papel na formação do homem. Estaria ele sendo capaz de formar cidadãos preocupados com o próximo e com a Nação Brasileira?

Referências

BITTAR, Eduardo C. B. Educação e metodologia para os direitos humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Centro Gráfico, 1988.

FEREIRA, Paulo Afonso. O avanço da tecnologia e as transformações na sociedade. Disponível em: https://noticias.portaldaindustria.com.br/artigos/paulo-afonso-ferreira/o-avanco-da-tecnologia-e-as-transformacoes-na-sociedade/2017. Acesso em: 25 maio 19.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1977.

GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura no conceito de homem. In: The Interpretation of Cultures. Nova York: Basic Books, 1973.

LECLERC, Gesuína de Fátima Elias. Resenha — Educação na Era Digital: a escola educativa. Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 31, n. 4, p. 359–365, Oct./Dec. 2015.

LIBANIO, João Batista. A ética do cotidiano. São Paulo: Paulinas, 2015.

PIAGET, Jean. Para onde vai a educação?. Tradução de Ivette Braga. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.

VALE-HÖLLINGER, Adriana. Misticismo, educação e crítica social. In: SIQUEIRA, Deis, LIMA, Ricardo Barbosa de. (orgs.). Sociologia das adesões: novas religiosidades e a busca místico-esotérica na capital do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

WERTHEIN Jorge. A sociedade da informação e seus desafios. Ci. Inf., Brasília, v. 29, n. 2, p. 71–77, maio/ago. 2000.

Sobre o autor: Antonio Carlos Coelho é Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Pós-Graduado em História Cultural e da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais e Graduado em História pelo Centro Universitário Newton. E-mail: coelhomil@hotmail.com.

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Revista organizada, desde 1991, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, com o objetivo de divulgar intervenções interdisciplinares e inovadoras.

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