O CORONAVÍRUS E AS POPULAÇÕES INDÍGENAS BRASILEIRAS: LUTA DE RESISTÊNCIA?
Por Fernanda Ollé Xavier e César Augusto Costa
O último censo demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que o Brasil possui um contingente populacional de aproximadamente 817.963 indígenas, os quais estão organizados em 305 etnias, e que falam 274 línguas diferentes. Esta cifra demonstra que 0,4 % da população brasileira é formada por índios. Deste total, 502.783 encontram-se na zona rural e 315.180 nos centros urbanos, ressaltando que 70 povos vivem em locais isolados, e que ainda não foram contatados.
As populações indígenas no país enfrentam um longínquo histórico de violências que permeiam os mais diversos campos: desde o antropológico, o social, o político, o ambiental, o sanitário, e outros. A reprodução do capitalismo impõe a transformação em mercadoria de todos os bens comuns naturais, o que conduz, à destruição do ambiente. É aceitável, que as populações que vivem em relações mais próximas com a natureza sejam as primeiras vítimas desse ecocídio, e que, muitas vezes, tentam opor-se à expansão devastadora do capitalismo. As comunidades indígenas na AL encontram-se em luta permanente pelo meio ambiente. Constata-se não apenas mobilizações locais em defesa dos rios ou das florestas, contra as multinacionais petrolíferas e mineradoras, mas também propondo um modo de vida alternativo ao capitalismo. Tais lutas podem ser sobretudo indígenas, mas com frequência elas ocorrem em aliança com camponeses sem terra, ecologistas, comunidades cristãs, sindicatos, partidos de esquerda, pastoral da terra e da pastoral indígena (LOWY, 2014).
Vale lembrar os desafios enfrentados quanto às suas lutas por territórios, e nesse sentido, não se pode olvidar que o conceito de território indígena transcende o sentido espacial do termo. Quando nos referimos a território indígena, o antropólogo Gersem Luciano (2006), membro da etnia Baniwa, explica que está ligado à condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de um bem material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se desenvolvem todas as formas de vida. Território indígena, portanto, é o conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva, de onde tais comunidades extraem todos os elementos necessários à firmação de suas identidades, enquanto grupo étnico dotado de idiossincrasias e modos de vida determinados.
Ora, conforme consta do art. 231 da Constituição Federal de 1988 (CF/88)[1], para que os direitos dos indígenas sejam garantidos demanda-se o reconhecimento e a garantia desta definição de território!
Considerando a dimensão territorial do Brasil, que foi divulgada pelo IBGE, e publicada no DOU nº 94 de 19/05/2020, conforme Portaria nº 177, de 15 de maio de 2020, o país possui uma superfície calculada em 8.510.295,914 km2[2]. No entanto, em que pese os indígenas constituírem os povos originários deste país de grandeza continental, — e por isso mesmo, deveriam ser considerados donos inequívocos destas terras -, atualmente, as terras indígenas (TI), devidamente regularizadas, ocupam uma irrisória proporção do solo brasileiro. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), órgão oficial executor da política indigenista do governo federal, existem apenas 462 terras indígenas regularizadas, que representam cerca de 12,2% do território nacional, localizadas em todos os biomas, com concentração na Amazônia Legal[3].
Todavia, diante da atual conjuntura governamental do país, este espectro tende a piorar, sobretudo o ambiental e o sanitário. Senão, vejamos: desde que o atual presidente da república, Jair Bolsonaro, assumiu o mandato, já se vislumbrou o desmonte das políticas ambientais no Brasil, as quais certamente impactam a vida dos povos tradicionais brasileiros; frisando que neste caso, está se tomando como sujeitos somente os indígenas.
Os alardes de desmonte do presidente já implicaram algumas ações em suas agendas, as quais afetaram diretamente os ecossistemas brasileiros, na vida e no exercício da cidadania de comunidades indígenas e tradicionais que vivem especialmente nas zonas rurais do Brasil. Eis alguns exemplos: extinção da Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas do Ministério do Meio Ambiente — MMA, sendo que, inclusive, foi cogitada a extinção do próprio MMA, o que sofreu severas críticas; extinção do Comitê Orientador do Fundo Amazônia; reestruturação do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), os quais passaram a ser orientados por ideais liberais e em defesa do agronegócio. Nesta senda, convém lembrar que o ministro do MMA, Ricardo Salles, defendeu uma solução capitalista para a Amazônia, criticando o modo como foram criadas as unidades de conservação e terras indígenas.
Desta medida, já se depreende o continuum do “carma” dos povos indígenas em relação à conquista dos seus territórios. Sem contar, ainda, a contenda da transferência da Funai do Ministério da Justiça para ser “arremessada” ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos; e a demarcação de terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, restando claro o conflito de interesses dentro do mesmo ministério, e colocando em xeque os direitos destas minorias identitárias, uma vez que a ministra desta pasta, Tereza Cristina, foi líder da bancada ruralista no Congresso Nacional.
No entanto, em face de um “resquício de luz” do governo, estas reformas administrativas não chegaram ao fim e ao cabo. Ainda na lista dos exemplos de desmonte, merecem destaque as discussões levantadas no atual governo sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas, no qual impera a defesa de atividades econômicas de larga escala, o que inclui o plantio de soja transgênica, exploração de madeira e mineração.
A partir destes lamentáveis eventos de matriz ambiental que se opõem à luta dos povos indígenas pela conquista de territórios e consequente demarcação e regularização de TIs, é que se argumenta no texto que estes sujeitos já enfrentam historicamente batalhas em busca de direitos e exercício da cidadania.
Somando-se a estes, releva-se o atual enfrentamento pelo qual passam todos os brasileiros perante um novo embate: a pandemia mundial, ocasionada pela disseminação do coronavírus, que está dizimando a população através da SARS-COV2, ou COVID-19. Esta doença atinge a todos indistintamente, mas principalmente as pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade social, econômica e sanitária, pois mais expostas aos fatores que influenciam o contágio, como densidade populacional, uso e ocupação do solo, índice de desenvolvimento humano (IDH), dentre outros. E, em razão deste cenário, alarmamos a situação dos povos indígenas, principalmente daqueles que vivem nas regiões mais remotas do Brasil.
E é esta crise, como exemplo de desafio no campo sanitário, que se levanta ao questionamento de como ela figura enquanto elemento adverso que se sobrepõe aos povos indígenas: seria ela um novo enfrentamento, ou mais um evento que potencializa o rol de suas lutas?
Considerando o atual cenário de enfrentamento da COVID-19 junto aos povos indígenas, os dados atuais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), órgão responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, vinculado ao Ministério da Saúde, revelam um boletim epidemiológico com a seguinte situação: 156 casos suspeitos, 526 confirmados, 633 descartados, 271 com cura clínica, e 27 óbitos. O órgão informa em seu site oficial, que as informações são obtidas junto a cada um dos trinta e quatro Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI)[4], sendo que o Distrito mais acometido é o da região do Alto Rio Solimões, localizado no sudoeste do Amazonas, onde foram registrados 212 casos confirmados, e 13 óbitos.
Esta situação remete à uma necessidade incessante de reflexão sobre a situação dos indígenas ante à pandemia, principalmente porque o atual contexto político e sanitário do país é lastimável, ou seja, todo o sistema estatal está doente!
A história destes povos é cristalina no que tange à sua vulnerabilidade a doenças infectocontagiosas e à dependência de um precário sistema de saúde, desarticulado das redes estaduais e municipais de assistência médica. Assim, seus membros temem serem dizimados por mais este surto epidemiológico.
Em artigo publicado sobre os desafios dos povos indígenas no combate ao coronavírus, a professora e pesquisadora da USP, Christina Queiroz (2020), demonstra que, segundo análise do médico especialista em epidemiologia e saúde de populações indígenas, Andrey Moreira Cardoso, do Departamento de Endemias da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o problema de disponibilidade de territórios tradicionais para o exercício dos modos de vida indígena, de acesso a saneamento básico, os problemas relacionados à desnutrição e anemia, assim como a emergência de doenças crônicas, tornam estas populações ainda mais vulneráveis à esta atual pandemia[5].
Retrata-se, pois, mais um caso de essencialidade do território tradicional como elemento caro e imprescindível para a manutenção da vida dos povos indígenas, ou seja, como um meio natural que alimenta e condiciona estes seres humanos a um desenvolvimento sadio e apto ao enfrentamento de doenças e de outras adversidades.
À guisa de conclusão, também vale ressaltar que os territórios indígenas devidamente preservados funcionam como barreiras ao desmatamento e equilíbrio da biodiversidade do país. Estudos no Território Indígena Maró, na Amazônia Paraense, realizados por Fábio Alckmin, doutorando em geografia humana pela USP, apontam evidências sobre a correlação entre a destruição de TIs e o surgimento de grandes doenças e pandemias, como a COVID-19[6], à medida em que relata, a partir da pesquisa de Aaron Bernstein, diretor do Center for Climate, Health, and the Global Environment (C-CHANGE), da Universidade de Harvard, que o desmatamento é prejudicial não só para as populações locais, mas para toda a humanidade, e que o desequilíbrio desse ecossistema força a migração de insetos e animais, os quais potencialmente podem contatar outros animais e pessoas. E dessa interação, Bernstein explica que “podem surgir vírus ou bactérias até então desconhecidas pela ciência, que tendem a se disseminar rapidamente em sistemas monocultores e de larga escala”.
Sustentada pela memória histórica e nestas evidências científicas é que se volta à indagação inicial do texto, de onde se questiona, se a atual pandemia causada pelo novo coronavírus mostra-se inédita, ou como a permanência de uma adversidade que sela a árdua trajetória suportada pelos povos indígenas: a de se manterem vivos diante de um iminente etnocídio à brasileira. Nesse caso, ousa-se posicionar que se está assistindo a um episódio anunciado há tempos.
REFERÊNCIAS
ALCKMIN, Fábio. A autonomia indígena em defesa da Amazônia (Parte I). Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-autonomia-indigena-em-defesa-da-amazonia-parte-i/. Acesso em 21 de maio de 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br> Acesso em 20 de maio de 2020.
BRASIL. Ministério da Saúde. Disponível em: https://saudeindigena.saude.gov.br/. Acesso em 21 de maio de 2020.
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Índios no Brasil. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas. Acesso em: 20 de maio de 2020.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indígenas. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/estrutura-territorial/15761-areas-dos-municipios.html?=&t=o-que-e. Acesso em 20 de maio de 2020.
LUCIANO, Gersem dos Santos. Da cidadania à autonomia indígena: um desafio à diversidade cultural. In. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje /– Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília: LACED/Museu Nacional, 2006.
LOWY, M. Lutas ecossociais dos indígenas na América Latina. Revista Crítica marxista, n. 38, 2014, p. 61–69.
QUEIROZ, Christina. Covid-19 e indígenas: os desafios no combate ao novo coronavírus. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/05/02/covid-19-e-indigenas-os-desafios-no-combate-ao-novo-coronavirus. Acesso em 21 de maio de 2020.
[1] CF/88, Art.231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
[2] Fonte: IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/estrutura-territorial/15761-areas-dos-municipios.html?=&t=o-que-e. Acesso em 20 de maio de 2020.
[3] Fonte: FUNAI. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas. Acesso em: 20 de maio de 2020.
[4] Fonte: Ministério da Saúde. Disponível em: https://saudeindigena.saude.gov.br/. Acesso em 21 de maio de 2020.
[5] Fonte: UOL. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/05/02/covid-19-e-indigenas-os-desafios-no-combate-ao-novo-coronavirus.htm. Acesso em 20 de maio de 2020.
[6] Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-autonomia-indigena-em-defesa-da-amazonia-parte-i/. Acesso em 21 de maio de 2020.
Sobre os autores:
Fernanda Ollé Xavier é Advogada. Doutoranda em Política Social e Direitos Humanos/UCPEL. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Latino-Americano (NEL/UCPEL). Contato: feolle@yahoo.com.br.
César Augusto Costa é Sociólogo. Docente no Programa de Política Social e Direitos Humanos/UCPEL. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Latino-Americano (NEL/UCPEL).
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