“Exposed party”: liberdade de expressão, direito de imagem e controle social
Por Alex Mecabô e Amanda Perli Golombiewski
A segunda quinzena de março de 2020 inaugurou[1], no contexto brasileiro, a adoção de medidas não farmacológicas para contenção do avanço da pandemia causada pelo novo coronavírus (COVID-19). Neste cenário, inspiradas no art. 3º, VI, da Medida Provisória n. 926/2020[2], em documentos técnicos epidemiológicos e nos modelos adotados em países onde a doença já se encontrava em estágio mais avançado de controle (como Itália, China e Espanha), centenas de cidades brasileiras passaram a aderir às regras e recomendações de isolamento social.
Tais ações, no contexto da crise sanitária causada pelo novo vírus, correspondem a uma intervenção do poder público com o objetivo de reduzir as interações sociais e o movimento nos centros urbanos, achatando, assim, a curva de contágio e evitando eventual colapso do sistema público de saúde, gerado em razão da altíssima taxa de transmissão do vírus versus a baixa capacidade de leitos de UTI.
As regras e recomendações, por certo, causaram frisson. A população, de uma hora para outra, viu-se submetida a decretos e leis municipais/estaduais que estabeleciam o fechamento do comércio, a imposição do isolamento e da quarentena e o uso de máscaras de proteção. Eventos e viagens cancelados. Protagonismo das modalidades de trabalho home office. Demissões e redução salarial em massa. A crise causada pela COVID-19 confinou grande parcela da população em suas residências e desencadeou uma guerra silenciosa causada pela extensa divergência entre aqueles que defendem o isolamento horizontal e aqueles que advogam pela sua modalidade vertical (na qual apenas indivíduos pertencentes a grupos de risco ficariam submetidos às medidas de restrição mais intensas).
Uma das facetas dessa rivalidade pode ser constatada por meio da criação de dezenas de perfis, na rede social Instagram, de “exposed party” (festa expostas, em tradução literal), que, em linhas gerais, expõem, por meio de fotos e vídeos, indivíduos que organizam festas privadas, em desrespeito às regras de distanciamento social. Algumas destas páginas contam, inclusive, com milhares de seguidores, como o perfil criado nas cidades de Brasília (@vacilocovid.bsb) e Uberlândia (@vacilocovid.udi). Mas tal exposição, que coloca em conflito a privacidade e o direito à imagem e a liberdade de expressão, é, sob a ótica jurídica, lícita?
Um dos mais conhecidos julgados acerca de direito de imagem no Superior Tribunal de Justiça consigna que “não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente a sua imagem. Se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada”[3].
Pelo entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, as páginas referidas estariam amparadas na própria exposição dos retratados nas fotos e vídeos divulgados: tais pessoas foram fotografadas e filmadas em eventos sociais durante a vigência de diretrizes sanitárias que aconselham o distanciamento social, estando, portanto, sujeitas à crítica de seus pares em decorrência desta exposição. Foi o que se deu com a digital influencer Gabriela Pugliesi, que recentemente realizou uma festa privada em sua residência, gravando vídeos com colegas e amigos e divulgando-os em suas redes sociais. A postagem foi alvo de amplas críticas, que a levaram a divulgar um vídeo de retratação[4].
É indissociável a análise de uma eventual violação ao direito de imagem pelas contas de Instagram citadas da relação com o direito de crítica, inerente à liberdade de manifestação do pensamento, assegurada pela Constituição Federal em seu art. 5º, IV. O Min. Celso de Mello, em relevante julgado, entendeu que “mostra-se intolerável a repressão estatal ao pensamento, ainda mais quando a crítica — por mais dura que seja — revele-se inspirada pelo interesse coletivo e decorra da prática legítima, como sucede na espécie, de uma liberdade pública de extração eminentemente constitucional (CF, art. 5º, IV, c/c o art. 220)”[5].
Parece-nos que a crítica almejada pelas páginas já referidas, ainda que mordaz, é lícita, na medida em que pretende levar para debate da sociedade questões de interesse público atinentes ao distanciamento social e à conduta daqueles que optam por desrespeitá-lo. Trata-se de questão de saúde pública que deve ser discutida e fiscalizada pelo coletivo. Em casos similares, os Tribunais pátrios defenderam a divulgação, por veículos de comunicação, de locais com focos do mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue.
Em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendeu-se que matéria jornalística que noticiava que um morador levara “cartão vermelho” da municipalidade por terem sido encontrados focos do inseto em seu quintal não caracterizaria exercício abusivo do direito de informar[6]. Em caso similar, o Tribunal de Justiça fluminense, consignou “regular exercício do direito de informação, bem assim da liberdade de imprensa, considerado o interesse público e social na conscientização da população e no combate preventivo da dengue, doença que há anos assola o Estado do Rio de Janeiro”[7].
Já o Tribunal de Justiça do Paraná, julgando a licitude de matéria jornalística que criticou depósito de pneus a céu aberto, entendeu que “inexistiu ânimo de injuriar, difamar ou caluniar o apelante, mas tão-somente de narrar os fatos e proceder a uma opinião crítica. A intenção da apelada foi levar ao telespectador notícia de relevante interesse social, até mesmo como forma de instar a população a permanecer mobilizada contra a proliferação do mosquito aedes aegypti [sic]”[8].
Ninguém questiona que temas de saúde pública podem — e devem! — ser objeto de discussão pela sociedade. As redes sociais, nesta esteira, ampliam o debate e permitem que os cidadãos não apenas participem de uma conversa já colocada, mas que formulem e apresentem suas próprias críticas das mais variadas formas. Eventuais abusos, naturalmente, deverão ser analisados caso a caso e tendo-se em vista cada manifestação do pensamento. Não se entende, todavia, que os perfis que divulgam imagens de pessoas que desconsideram as diretrizes sanitárias de isolamento social com finalidade crítica estejam, por si só, violando direitos da personalidade.
Em um juízo de proporcionalidade, próprio dos conflitos entre direitos da personalidade, parece-nos que a balança pende para a proteção ao direito de crítica.
[1] A OMS classificou, em 11 de março de 2020, a doença causada pelo novo coronavírus como pandemia. O decreto legislativo 6/2020, de 20 de março de 2020, decretou, no Brasil, estado de calamidade pública.
[2]Art. 3º: para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: VI — restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; e b) locomoção interestadual e intermunicipal;
[3] STJ — REsp 595600 — Rel. Min. Cesar Asfor Rocha — J. 18.03.2004
[4] Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/04/26/gabriela-pugliesi-faz-festa-em-casa-publica-na-internet-e-pede-desculpa-a-quem-se-sentiu-ofendido.ghtml
[5] STF — AgRg no ARE 690841 — J. 21.06.2011
[6] TJSP — AC 1000149–80.2016.8.26.0369 — Rel. Desa. Mariella Ferraz de Arruda Pollice Nogueira — J. 24.10.2017).
[7] TJRJ — AC 0174540–39.2011.8.19.0001 — Rel. Desa. Denise Levy Tredler — J. 07.05.2013.
[8] TJPR — 15425068 — Rel. Desa. Vilma Régia Ramos de Rezende — J. 03.11.2016.
Sobre os autores:
Alex Mecabô é advogado, mestrando em Direito das Relações Sociais, pela UFPR; MBA em Business Law, pela FGV.
Amanda Perli Golombiewski é advogada, especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo UNICURITIBA.
O blog da Revista Direito, Estado e Sociedade publica textos de autores convidados. As opiniões expressas nesses posts não representam, necessariamente, a opinião do periódico e de sua equipe editorial.