EPIDEMIAS E SANEAMENTO BÁSICO: A DIGNIDADE HUMANA SOB O PRISMA DA CÓLERA E DO COVID-19

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Por Vitória Pimenta Leal da Silva

Crédito de Imagem: Photo by Pat Whelen on Unsplash

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, recordada pelo seu teor democrático, consagra em seu escopo, direitos e garantias fundamentais que corroboram para a concretização de uma vida humana digna, como assim preceitua seu artigo 5º, Capítulo II. Sob essa perspectiva, reconhece-se neste espaço a existência de prerrogativas para o desenvolvimento de uma cidadania plena, tais como o acesso à Saúde, Educação e à Segurança.

Neste ínterim, um desses direitos merece destaque na pesquisa presente, visto que se relaciona diretamente a mais de um aspecto da vida humana: o saneamento básico. Consagrado na Carta Constitucional e em Leis complementares, o acesso a uma infraestrutura mínima de saneamento torna-se um dos pilares para um desenvolvimento pleno e saudável do cidadão. As implicações de um país que negligencia essas prerrogativas ultrapassam as problemáticas estruturais e alcançam direitos como a Saúde, o Lazer e até mesmo a Educação.

De tal forma torna-se relevante a problemática apresentada, que além de ser discutida por áreas como a Ciência, a Política e o Direito, abarca também a Literatura e o Cinema. Dessa forma, Gabriel García Marquez ao publicar em 1985 uma das suas obras de maior sucesso, transcendeu qualquer narração romântica e idealista, e consagrou a sua escrita também como um acesso histórico. Através de “El amor en los tiempos del cólera”, em seu título original, é possível questionar as motivações da epidemia de cólera que se instaurou na Colômbia ao final do século XIX, em meio aos devaneios do trio de personagens principais.

Ao apresentar a realidade epidêmica de uma região e demonstrar as profundas consequências para a população, a obra incita a percepção da realidade vivenciada pelo mundo inteiro no ano de 2020, em decorrência da transmissão do COVID-19. Outrossim, cientes dos preexistentes obstáculos brasileiros frente ao saneamento básico, a correlação entre a literatura e a realidade apresenta-se como indeclinável.

Neste diapasão, o presente trabalho possui como fito principal relacionar as epidemias da Cólera e do Coronavírus, bem como avaliar as problemáticas que as impulsionam e atingem os direitos dos individuo, em especial os concernentes ao saneamento básico. Far-se-á a partir de uma ótica crítica, investigativa e factual dos períodos históricos supracitados e será estruturado em dois capítulos que apresentarão uma correlação entre a Literatura, o Direito e a dignidade do homem.

2 LITERATURA E REALIDADE: OS IMPACTOS DE UMA EPIDEMIA.

Em 1985, Gabriel Garcia Marques, de origem colombiana, publicava a sua obra intitulada “O amor nos tempos de cólera”, a primeira escrita após receber o prêmio Nobel de Literatura em 1982. O aclamado livro relata a história do triângulo amoroso constituído por Fermina Daza, o doutor Juvenal Urbino e o senhor Florentino Ariza em Cartagena das Índias, cidade colombiana banhada pelo mar do Caribe.

A trama ocorre ao final do século XIX, período no qual coexistiam na cidade uma instabilidade política, em decorrência das guerras entre conservadores e liberais, e uma problemática sanitária protagonizada pela epidemia de cólera. Transcendendo, entretanto, a ficção, a epidemia colérica incita a observação das medidas realizadas pelo Governo, e o alcance histórico que evidencia.

A cólera é causada pela ação da toxina liberada pela bactéria Vibrio cholerae que altera o fluxo normal de sódio e cloreto do organismo, e resulta em desidratação e perda de fluidos e sais minerais importantes para o ente. Sua transmissão ocorre por via fecal-oral, e, por conta disso, conforme o Ministério da Saúde, os principais fatores riscos para a cólera são as condições precárias de saneamento básico, o consumo de água sem tratamento adequado a precariedade da higiene pessoal, bem como o consumo de alimentos sem higienização ou manipulação adequada.

Não obstante, apenas no final do século XIX, a partir das contribuições de Roberto Koch as causas da doença foram confirmadas, alertando consequentemente todo o mundo para a necessidade de uma estrutura básica que atingisse toda a população. Dessa forma, a denúncia feita por Gabriel Garcia fomenta essa discussão, uma vez que no início da trama, ainda ignorantes acerca das causas da patologia, as medidas asseguradas pelos representantes governamentais eram secundárias, mas não preventivas.

A Colômbia desse período vivenciava uma precária estrutura sanitária, e consequentemente condições de higiene desprezadas: motivações fundamentais para a transmissão da moléstia que atingiu mais de um quarto da população. Neste cenário afirma Fernando Serpa Flórez:

"Em los años de 1849 y 1850, de nuevo tuvimos uma grave epidemia de cólera. Está mejor documentada que las anteirores y em sua admirable novela, Gabriel García Márquez la rescató del ovido de nuestra memória colectiva. […] En Cartagena, segundo los datos que consigna don Salvador Camacho, muirió uma cuarta parte de la población por esta causa: de sus diez mil habitantes de entonces, fallecerion dos mil cuatrocientos afectados por El cólera morbo" (FLÓREZ, 1992, pag. 97).

Sem embargo, urge explicitar que apesar de uma melhoria massiva ao redor do mundo acerca das condições sanitárias, muitos países em desenvolvimento enfrentam essa patologia ainda no século presente. Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, todos os anos, há cerca de 1,4 milhões de casos de cólera no mundo.

Neste ínterim, apesar de relevante, a Cólera cede espaço à uma nova infecção que atinge todo o mundo no ano de 2020: o COVID-19. O Coronavírus (CoV) é uma família de vírus identificada pela primeira vez na década de 1960. Alguns desses vírus geram apenas um resfriado comum, mas outros conseguem alcançar quadros mais preocupantes, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV). Em janeiro deste ano, entretanto, um novo vírus foi identificado, sendo este temporariamente nomeado de “2019-nCoV”.

A princípio, os sinais comuns incluem sintomas respiratórios, febre, e em casos mais graves, a infecção pode causar pneumonia, síndrome respiratória aguda grave, insuficiência renal e até a morte. Por ser uma patologia respiratória, medidas essenciais de prevenção foram incentivadas em todos os países acometidos. A primordial relaciona-se com a higiene pessoal e o ato de lavar as mãos sempre que possível. Entretanto, com o avanço dos casos, diversos países, inclusive o Brasil, determinaram o período de quarentena, sendo permitido o funcionamento apenas de serviços essenciais. Infelizmente, mesmo com a imposição de tais diligências, o número de mortes no mundo ultrapassa os 379.000 no mês de junho, e no Brasil, cerca de 32.000, conforme os dados do Ministério da Saúde.

Destarte, perceptíveis são os impactos imediatos causados na sociedade que vivencia uma epidemia. Além dos efeitos morais, as restrições provenientes de um controle de proliferação que foram incentivados tanto na Colômbia com a cólera, como na maioria dos países que sofrem com o coronavírus, possuem relação direta com o Ordenamento Jurídico. O direcionamento dos recursos, o posicionamento governamental firme e em especial a ponderação de direitos fundamentais são quesitos de extrema relevância em períodos de crise, e carecem de uma cautela específica para serem bem empreendidos e respeitarem os direitos resguardados pela Constituição Federal.

3 O SANEAMENTO BÁSICO COMO DIGNIDADE HUMANA

O saneamento básico, segundo a OMS, é o gerenciamento ou controle dos fatores físicos que podem exercer efeitos nocivos ao homem, prejudicando seu bem-estar físico, mental e social. No Brasil, esse direito é assegurado pela Carta Constitucional de 88, bem como pela Lei nº 11.445/2007 que estabelece as diretrizes nacionais para a efetivação do Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB).

Nesta conjuntura, é imperioso explicitar que o PLANSAB consiste no planejamento integrado do saneamento básico, incluindo quatro componentes essenciais: abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e drenagem das águas pluviais urbanas. Dentre as principais metas do projeto, cabe destacar o alcance de 99% de domicílios abastecidos por rede de distribuição ou por poço ou nascente, com canalização interna. Tais parâmetros estão em consonância à agenda 2030 da Organização das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável, sendo que um dos seus principais objetivos é o de em 15 anos, assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água, bem como alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos.

Nesse diapasão, a realidade presente distancia-se substancialmente das propostas supracitadas. Conforme os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2018, 46,85% dos brasileiros não dispõem da cobertura de coleta de esgoto, enquanto 35 milhões de pessoas não tem acesso ao abastecimento de água.

Consoante os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também de 2018, na região Nordeste, 55,4% dos domicílios não possuem rede de esgoto, e esse número cresce para 78,2% na região Norte. Dentro desta perspectiva, o Estado com maior déficit sanitário do país é o Piauí, local que alcança o bárbaro número de 93% da população sem coleta de esgoto.

À vista disso, torna-se premente a relação entre a baixa qualidade de vida e o alto índice de proliferação de patologias. Cairncross e Valdmanis (20n 06) e Scott, Cotton e Govindan (2003), por exemplo, apresentam o saneamento básico como um desafio de saúde pública que tem persistido por décadas, cujas fragilidades em sua estrutura provocam impacto direto no desenvolvimento humano: aumento da incidência de doenças e morte, pobreza crônica, degradação ambiental.

Neste cenário, a discussão sanitária em tempos de pandemia define-se como urgente, uma vez que resulta em precárias condições de higiene, pressuposto primordial para a contenção do coronavírus. Entretanto, a impossibilidade de realizar tais medidas, pela população que não possui o mínimo existencial para um desenvolvimento saudável, viola expressamente a dignidade dessas pessoas. A vulnerabilidade de tais grupos se expande categoricamente neste panorama, pois a falta de acesso a um saneamento básico implica o vilipêndio taxativo a direitos fundamentais consagrados na Constituição, em especial o direito à Saúde.

Assim, percebe-se como imprescindível o posicionamento governamental sob o prisma de políticas públicas que auxiliem esse público a atravessar a realidade pandêmica e conquistar a concretude constitucional, que é almejada indistintamente por todos.

4 CONCLUSÃO

Em decorrência de tais constatações, torna-se evidente a relação intrínseca entre um saneamento básico de qualidade, a garantia de direitos fundamentais e a consequente preservação da dignidade humana. Dessa forma, tal realidade incide sobre o mundo desde as primeiras epidemias detectadas. Gabriel Marquez exemplifica isso com a cólera na Colômbia, e a humanidade atual enxerga intimamente tais impactos com o COVID-19.

Destarte, é imperioso destacar a relevância da atuação governamental em tempos de crise, em especial, na crise sanitária hodierna. A existência de um corpo técnico empenhado, que atue de forma harmônica com o Poder Executivo, bem como a conscientização da magnitude da problemática pela população, são pré-requisitos para deter a transmissão da doença e solucionar essa adversidade. Por fim, o posicionamento firme e sóbrio do Estado acerca das populações que não possuem condições mínimas de saneamento, precisa existir para que os valores fundamentais de um Estado Democrático de Direito sejam concretizados.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 2 jun. 2020.

CAIRNCROSS, S.; VALDMANIS, V. (2006) Water Supply, Sanitation, and Hygiene Promotion. In: JAMISON, D.T.; BREMAN, J.G.; MEASHAM, A.R. (2006) Disease Control Priorities in Developing Countries. 2. ed. Washington, D.C.: The International Bank for Reconstruction and Development / The World Bank.

GARCÍA MÁRQUEZ G: O amor nos tempos do cólera. Edit. La Oveja Negra, 1987.

IBGE. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (2018). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/meio-ambiente/9073-pesquisa-nacional-de-saneamento-basico.html. Acesso em: 30. mai. 2020.

LEI 11.445 de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm. Acesso em: 1 jun . 2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coronavírus. Disponível em: https://saude.gov.br/. Acesso em: 3. Jun.2020.

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA. Direção: Mike Newell. Produzido por: New Line Cinema. 2007. (2h 19min).

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). (2015) Desenvolvimento Sustentável. Genebra: ONU. Disponível em: <://nacoesunidas.org/post2015/agenda 2030. Acesso em: 30 de maio de 2029.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). (2016) Saneamento básico. Disponível em: https://www.who.int/eportuguese/countries/bra/pt/. Acesso em: 30. Mai. 2020.

PLANSAB. Plano Nacional de Saneamento Básico . Disponível em: https://www.mdr.gov.br/saneamento/plansab. Acesso em: 1. jun. 2020.

SERPA FLÓREZ, F. (1). Historia del cólera en Colombia. Biomédica, 12(3–4), 95–101. Disponível em: https://doi.org/10.7705/biomedica.v12i3-4.2031. Acesso em: 1. jun. 2020.

Sobre a autora:

Vitória Pimenta Leal da Silva é Bacharelanda em Direito na Universidade do Estado da Bahia — UNEB campus XIX. E-mail: vitoriapimenta.leal@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/6935630104606021

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