Direito à saúde das pessoas privadas de liberdade versus segurança pública: uma análise da recomendação n° 62 do CNJ e a reavaliação das prisões provisórias e domiciliares

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Por Lorena Carvalho Leite Garcia de Oliveira

Crédito de Imagem: Imagem de Ichigo121212 por Pixabay

A recomendação n° 62 de 17 de março de 2020 do Conselho Nacional de Justiça dispõe da adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus — Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal, trazendo à discussão questões referentes ao direito à saúde e as consequências dessa recomendação para a segurança pública, no que tange à reavaliação da prisão provisória, bem como a prisão domiciliar que irá beneficiar muitos indivíduos privados de liberdade.

No âmbito do contexto internacional, foi no dia 31/12/2019 que o agente viral causador de infecção respiratória foi descoberto, após casos registrados na china. E em 11 de março, foi declarado pela Organização Mundial de Saúde a situação de pandemia mundial pelo novo coronavírus, levando o governo brasileiro adotar medidas preventivas. Dentre as medidas adotadas nacionalmente, tivemos em 4 de fevereiro de 2020 a Declaração de emergência em saúde pública de importância nacional –ESPIN (portaria 188/GM/MS), e na esfera da jurídica, seguindo a declaração nacional de emergência, o Conselho Nacional de Justiça instituiu a recomendação n° 62/2020.

A recomendação, em seu artigo 4°, inciso I, propõe aos magistrados com competência na fase de conhecimento criminal, a reavaliação das prisões provisórias levando em conta:

a) mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência, assim como idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco; b) pessoas presas em estabelecimentos penais que estejam com ocupação superior à capacidade, que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, que estejam sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus; c) prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa; (CNJ,2020)

Além disso, no artigo 5°, já no âmbito da execução penal, que seja concedido prisão domiciliar em relação a todas as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto, mediante as condições impostas, em como na competência cível, a prisão dos devedores de alimentos, conforme dispõe o artigo 6°.

Segundo a recomendação, essas medidas tem como foco a prevenção da infecção pelo novo coronavírus, e visam a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade, uma vez que é garantia de saúde coletiva, e um possível cenário de contaminação levaria a impactos na segurança pública. É nesse contexto que o trabalho se desenvolve, uma vez que devem ser garantidos os direitos dos presidiários, mas a realidade prisional torna a prisão domiciliar inviável, capaz de trazer impactos negativos à segurança pública do país devido à falta de ressocialização.

Tendo como escopo inicial reflexivo a crítica da recomendação n° 62, de 17 de março de 2020, do CNJ, busca-se evidenciar o embate entre os direitos das pessoas privadas de liberdade versus a segurança pública do Brasil, uma vez que devido à falta de ressocialização, as medidas visando uma “falsa sensação do direito à saúde”, tende retornar à sociedade indivíduos sem perspectiva econômica e financeira, que voltarão ao crime. Dessa forma, busca-se trazer reflexões referentes ao direito à saúde e a situação dos presídios no país, bem como a ressocialização, ao analisar as consequências das recomendações do CNJ, que já estão sendo adotadas.

Está disposto nos artigos 41, VII e 11, II da Lei de Execuções Penais (BRASIL,1984), o direito de assistência à saúde, tanto de caráter preventivo como curativo, além do Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, que dispõe sobre as diretrizes do tratamento de saúde dos presos. Vale ressaltar também, no âmbito internacional, os Princípios Básicos para o tratamento de presos que em seu artigo 9° institui às pessoas privadas de liberdade o acesso aos serviços de saúde.

Apesar do direito à saúde amplamente assegurado pela positivação jurídica, a realidade é outra. Na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Sistema Prisional Brasileiro (2009) foram relatadas péssimas condições de saúde e higiene dos ambientes prisionais:

“A grande maioria das unidades prisionais é insalubre, com esgoto escorrendo pelos pátios, restos de comida amontoados, lixo por todos os lados, com proliferação de roedores e insetos, sendo o ambiente envolto por um cheiro insuportável.” (Brasil p. 196,2009)

Segundo último levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (INFOPEN 2019), o Brasil conta com 748.009 presos, sendo 222.558 provisórios, 25.137 em regime aberto e 133.108 no semiaberto. A recomendação assevera que os ambientes prisionais são insalubres e possui a questão da aglomeração de pessoas, ou seja, de fácil contágio e proliferação do vírus. Coadunando, o artigo “perfil epidemiológico de pessoas privadas de liberdade” (Alves JP, Brazil JM, Nery AA et al. 2017), chegou à conclusão de que as doenças mais relatadas foram diabetes mellitus, hipertensão arterial, tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis/AIDS. Portanto, considerando o perfil prisional brasileiro, a recomendação, levando em conta a questão dos grupos de risco e tipos de regime no qual se recomenda a prisão domiciliar por força da pandemia, há uma gama muito grande de pessoas privadas de liberdades com direito à recomendação.

Segundo o DEPEN, estima-se que cerca de 30 mil presos deixaram as penitenciárias por força da recomendação, seja por alvarás de soltura ou concessão de prisão domiciliar, e além disso, o diretor-geral da DEPEN, Fabiano Bordigon, asseverou que muitos foram liberados mesmo sem o uso da tornozeleira.

A CPI carcerária de 2017 constatou que todavia, a ressocialização no Brasil ainda se encontra em estágio muito incipiente, sendo inexistente em diversos de nossos estabelecimentos penais (BRASIL, p. 172,2017), o que leva ao índice de reincidência genérica de 70% no nosso país. E, no contexto atual de crise de saúde que afetou também a economia do pais e os empregos, a soltura desses detentos trará impactos negativos a segurança pública do país, somada à falta de estrutura de fiscalização do regime domiciliar concedido pela falta de tornozeleiras.

A juíza Leila Cury da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, em ofício enviado ao STF, um estudo baseado pelo infectologista Luiz Antonio Teramussi, estima-se que 80% dos presidiários do Brasil será contaminada pelo vírus, tendo 20% necessidade de internação e 8% utilização de UTI. No último relatório divulgado pelo Depen no dia 08 de maio, 483 presos já estavam contaminados e o Brasil possuía 22 mortes por covid-19 nos presídios.

A contaminação nos presídios é maior, pela aglomeração e péssimas condições sanitárias, e as subnotificações nesse contexto são maiores, uma vez que há o descaso para com a população privada de liberdade. Portanto, há uma sobreposição da saúde em detrimento da segurança pública, “falsa sensação do direto à saúde”, levando em conta a contrariedade da resolução com a realidade prisional, uma vez que seria mais benéfico realizar investimento na saúde e ressocialização para reverter a situação inconstitucional ao invés da concessão do benéfico de prisão domiciliar.

Referências

ALVES, Jeorgia Pereira; BRAZIL, Jamille Marinho; NERY, Adriana Alves; VILELA, Alba Benemérita; FILHO, Eduardo Martins. Perfil Epidemiológico de pessoas privadas de liberdade. Revista de Enfermagem-UFPE online,2017. Disponível em: http://faculdadeguanambi.edu.br/wp-content/uploads/2018/05/artigo-hiv.aids_.pdf. Acesso em: 10 de abril de 2020.

BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. Brasília: edições câmara,2009.

______. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. Brasília: edições câmara,2017.

_______. Presidência da República. Lei das Execuções Penais, Lei 7.210 de 11/07/1984.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 05 abril. de 2020.

_______. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347: MEDIDA CAUTELAR NA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. Relator Ministro Marco Aurélio Mello. Brasília, setembro de 2015. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665. Acesso em: 05 abril de 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n° 62 de 17 de março de 2020. Disponível em : https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf .Acesso em : 05 abril de 2020.

COSTA, Flávio. Coronavírus: No pior cenário, 10 mil presos podem precisar de UTI no Brasil. UOL. Disponível em :https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/04/coronavirus-presos-infectados-subnotifcacao-sistema-prisional-do-brasil.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 17/05/2020.

DEPEN.Covid-19 Painel de Monitoramento dos Sistemas Prisionais. Painel Mundial Covid-19 08/05/2020.Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/covid-19-painel-de-monitoramento-dos-sistemas-prisionais. Aceso em: 17/05/2020.

GANDRA, Thiago Grazianne. Prisão sem vigilância estatal: evolução do método da pena de prisão e o método APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado). Curitiba: Juruá, 2017.

GRILLO, Marco. Ministério da Justiça estima que 30 mil presos deixaram a cadeia em função da pandemia de coronavírus. O globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/ministerio-da-justica-estima-que-30-mil-presos-deixaram-cadeia-em-funcao-da-pandemia-de-coronavirus-1-24355221. Aceso em: 02 de abril de 2020.

INFOPEN. Levantamento nacional de informações penitenciárias- Atualização dez. 2019.DEPEN. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLWFlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 13 de abril de 2020.

MINISTÉRIO DA SAÚDE (BR). Portaria n° 188, de 3 de fevereiro de 2020.
Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/prt188-20-ms.htm . Acesso em: 5 de abril de 2020.

Sobre a autora:

Lorena Carvalho Leite Garcia de Oliveira é Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Oeste da Bahia — UFOB. Membro Titular do Conselho da Comunidade de Execuções Penais de Barreiras — CCEPB, atuante na área de palestras, seminários e cursos profissionalizantes e trabalho. Membro da Pastoral Carcerária de Barreiras — PCR. Possui interesse em Direito Penal e Direito Processual Penal, Execuções Penais, Métodos Alternativos de Cumprimento de Pena, Ressocialização Penal.

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Revista organizada, desde 1991, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, com o objetivo de divulgar intervenções interdisciplinares e inovadoras.

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