A Necropolítica do Governo Bolsonaro na Pandemia do COVID-19

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Por Osmar Alencar Jr e Fabrizio Lorusso

Crédito de Imagem: Andy Dean (Adobe Stock)

Os conceitos de biopolítica e necropolítica tornaram-se cada vez mais relevantes nas ciências sociais, e até na mídia, para interpretar as contradições e violências da época em que vivemos, caracterizada por um sistema capitalista mundializado, neoliberal, financeirizado, cuja raiz é a superexploração do trabalho e a concepção do produto como riqueza de poucos e pobreza/miséria de muitos.

Para Foucault[i] a biopolítica é uma forma de poder e gestão da vida humana, da população e da sociedade como parte da espécie, a partir de seus constituintes biológicos e existenciais. Também, entendida como uma função “protetora” e, ao mesmo tempo, controladora e disciplinadora, sobre corpos e grupos humanos, exercida pelo Estado por meio de leis e políticas públicas.

Essa função protetora do Estado é exercida pelo biopoder, o poder do Estado de regular a sociedade em vários aspectos da vida, desde o nascimento até a morte. Ganhou espaço na Europa Ocidental com o Welfare State. Tal poder passou a decidir sobre quem proteger ou não na população, estabelecendo hierarquias étnicas, de classe ou de gênero contra aqueles que supostamente representam uma “ameaça” para o resto da sociedade: por exemplo, isso acontece com a criminalização da migração e negação de serviços de saúde para refugiados; com a escolha sobre qual vida deve prevalecer, se a de jovens ou de idosos, quando respiradores são escassos em um hospital lotado por centenas de pessoas infectadas pelo COVID-19 ou quando opta por retirar a população jovem do isolamento social, em meio a uma pandemia, para não afetar os mercados.

Diferentemente da biopolítica, a necropolítica, na perspectiva de Mbembe[ii], parte da suposição de que o biopoder global na periferia não funciona da mesma forma que no centro capitalista. Refere-se a outro tipo de poder, o de matar por meio de tecnologias e dispositivos, legais e ilegais, com efeitos muito mais radicais, como acontece com a guerra às drogas, o feminicídio, o desaparecimento forçado, a escravidão, o tráfico de pessoas, entre outras graves violações dos direitos humanos. Seu objetivo é administrar a morte, não mais a vida.

Na África, Ásia e América Latina, mas também, acrescentamos, nas periferias do sistema na Europa ou nos Estados Unidos, atinge seus extremos: populações inteiras sobrevivem como mortos-vivos ou caminhantes espectrais dentro de novos campos de concentração, micro-estados de exceção para os “sacrificáveis” ou “descartáveis” (homo sacer, de acordo com Giorgio Agamben) da sociedade.

Regular a vida e a morte são dois lados do mesmo medalhão, os objetivos da bio e da necropolítica. E, estes, na prática, são liderados cada vez menos pelo Estado-nação e mais por atores privados e paraestatais, oligopólios e poderes criminais ou legais (ou uma mistura de ambos), em plena harmonia com o modelo socioeconômico e ideológico dominante, do tipo privatizador e saqueador de bens comuns e direitos em todo o mundo.

No Brasil, a pandemia do COVID-19 tem evidenciado que a opção do governo Bolsonaro, expresso nas declarações e ações, é cada vez mais minimizar o espaço da biopolítica e maximizar o da necropolítica. A estratégia do governo de extrema direita neoliberal para garantir o processo de acumulação capitalista em tempos de crise estrutural, uma combinação de crise econômica e política-ideológica, é adotar medidas que desprezem a vida da população mais vulnerável (idosos e trabalhadores de menor renda), em favor de uma pequena fração da burguesia (financeira, comercial e agroindustrial) que dá sustentação política ao governo.

Nesse sentido, desde o início do governo Bolsonaro (2019) várias medidas foram tomadas para reduzir a proteção do Estado, principalmente para a classe trabalhadora de baixa renda e para os idosos: contrarreforma da previdência social, redução do fluxo de recursos orçamentários para a educação e saúde pública — desmonte das universidades públicas e do Sistema Único de Saúde –, cortes drásticos no orçamento de ciência e tecnologia e gestão ambiental e desestruturação do serviço público.

Todas essas medidas visavam atender o cumprimento da Emenda Constitucional 95 (EC 95) que congelou os gastos sociais e investimentos públicos por 20 anos e liberou os gastos financeiros, tais como juros e amortizações da dívida pública, com o objetivo de fazer superávits primários para honrar os compromissos para com a fração da burguesia financeira e rentista, independentemente da situação econômico-social do país. Eis uma clara sinalização de que na biopolítica do governo Bolsonaro, o cuidar ou a proteção do Estado está voltada para uma pequena fração da burguesia nacional e internacional.

Entretanto, o ano de 2020 iniciou com a pandemia do COVID-19, a necessidade de isolamento social da população e com o aprofundamento da crise econômico-política mundial. Nesse cenário, os governos dos países, mesmo os mais neoliberais como EUA e Inglaterra, adotaram medidas econômicas e sociais de cuidado com suas populações mais vulneráveis acometidas pelo Corona vírus, bem como em relação aos trabalhadores(as) afetado(a)s pela redução drástica ou paralisação das atividades econômicas. Nessa perspectiva, os governos neoliberais têm buscado no Estado, na biopolítica, a saída para combater a pandemia e a consequente depressão econômica iminente no mundo.

Na contramão do uso da biopolítica como estratégia para minimizar os efeitos da pandemia na saúde e na economia, o governo Bolsonaro resolveu radicalizar politicamente e adotou a estratégia da necropolítica para inibir a crise de acumulação, aprofundada pelo isolamento social e pela redução das atividades produtivas não essenciais ao combate do Corona vírus.

Tal estratégia fundamenta-se na negação da pandemia no discurso do Presidente da República, tratando-a como uma “gripezinha”, de baixa letalidade, inferior a outros vírus, como, por exemplo, o da influenza, comum nos verões chuvosos do país. Ou ainda, no menosprezo às vítimas, afirmando que ocorreria no máximo a morte de alguns idosos, que já estariam sujeitos à morte por outras doenças infectocontagiosas.

Portanto, para Bolsonaro, o isolamento social vertical da população seria a estratégia mais indicada para contenção do contágio, pois confinando os idosos acima de 60 anos em casa, os jovens — cuja mortalidade é baixíssima — poderiam voltar a trabalhar para garantir a normalidade do funcionamento dos mercados e da economia. Segundo ele, sem o retorno deles para as atividades econômicas, as consequências de uma paralisação da produção e circulação de mercadorias para a população seria pior que algumas mortes de idosos.

A negação da pandemia tem sido acompanhada de medidas econômicas tímidas para os trabalhadores mais vulneráveis e de ações preventivas massivas para o capital. Enquanto, inicialmente, propôs a liberação de R$ 200,00 para cada trabalhador informal por três meses, a suspensão dos contratos de trabalhos sem o correspondente pagamento de salários pelos patrões e a redução de até 50% dos salários dos servidores públicos durante a pandemia, já aprovou o socorro de R$ 2,3 trilhões para o sistema financeiro, sendo R$ 1,2 trilhão para a liquidez dos bancos e R$ 1,1 trilhão para garantir futuras perdas das empresas no mercado financeiro. Assim, mais uma vez reafirma sua preferência pela proteção de uma pequena fração da burguesia, em detrimento da maioria da população brasileira.

A estratégia e as medidas econômicas adotadas pelo governo receberam duras críticas da sociedade brasileira, com muitos “panelaços” de insatisfação da população durante os pronunciamentos, pela TV, do Presidente Bolsonaro. Os governadores dos Estados criticaram a minimização da pandemia pelo governo federal e tomaram medidas diametralmente opostas: proibição de aglomeração de pessoas, isolamento horizontal da população, fechamento do comércio, dos aeroportos e das fronteiras para os Estados mais afetados pela pandemia, redução do funcionamento do transporte coletivo e interdição de praias. As ações dos governadores, em pouco tempo, surtiram o efeito esperado de isolamento e a grande maioria das pessoas passou a ficar confinada em suas moradias ou abrigos públicos.

O isolamento horizontal implementado pelos governos estaduais foi repudiado pelo presidente, que em pronunciamento em rede nacional de comunicação, criticou a alternativa adotada para conter o Corona vírus. Repetiu Bolsonaro que o controle da pandemia havia se tornado um caso de histeria coletiva, alegando que este surto não poderia parar a economia do país. Portanto, conclamou toda a população, em especial os mais jovens, a voltar ao trabalho, bem como os pais a levarem seus filhos para a escola, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde.

Ultrapassando os limites da razoabilidade, incentivou a realização de carreatas pró-Governo e pelo fim do confinamento horizontal da população, além de patrocinar com dinheiro público uma campanha publicitária orçada em R$ 4 milhões, sem licitação, para defender que o Brasil não podia parar e que as pessoas saíssem do isolamento horizontal. Felizmente, a Justiça Federal brasileira suspendeu a campanha, por ir de encontro às recomendações da OMS e à vida dos brasileiros.

As medidas sanitárias e econômicas do Governo Bolsonaro privilegiam o mercado e a fração mais rica da população brasileira e vão na contramão das adotadas pelos países com população mais contaminada pelo Corona vírus — China, Itália, Espanha, Inglaterra e EUA -, que são: isolamento horizontal e gigantesca ajuda econômica do Estado aos trabalhadores e suas famílias.

Na essência, tais medidas do governo brasileiro, por um lado, levarão um maior número de brasileiros a se contaminar e morrer; e por outro, deixarão muitos trabalhadores confinados morrerem de fome; desse modo, não visam cuidar das vidas, mas administrar a morte dos mais vulneráveis, aqueles que menos contribuem e mais geram gastos para o Estado. Para os neoliberais do governo, quanto mais idosos e miseráveis falecerem na pandemia, menos recursos públicos serão destinados aos gastos com as políticas sociais, favorecendo o superávit fiscal e o repasse de mais recursos para o pagamento da dívida pública.

É uma saída genocida e primordial para o fôlego do capital, pois uma limpeza social em curso no país, nesse momento, destinará mais recursos públicos para uma pequena fração da burguesia nacional e internacional, conveniente em um cenário de queda nos lucros das empresas. Para barrar esta necropolítica do governo Bolsonaro é necessária uma rebelião da classe trabalhadora brasileira: paralisar todas as atividades econômicas e os serviços não essenciais para o combate ao COVID-19. A prioridade é salvar vidas e não salvar o capital. Basta, governo Bolsonaro!

Referências

[i] MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.

[ii] FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Edições 70, 2010.

Sobre os autores

Osmar Alencar Jr é Graduado em Ciências Econômicas; Mestre e Doutor em Políticas Públicas; Professor Adjunto do Departamento de Economia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba — UFDPar; Coordenador do Observatório do Fundo Publico na UFDPAR; Diretor do ANDES SN; Autor de artigos e capítulos de livros sobre Estado, Fundo Público e o Financiamento de Políticas Sociais. Publicou o livro “Estadualização da Saúde no Piauí: a força da ação política em 2019. E-mail: jrosmar@hotmail.com.

Fabrizio Lorusso é Licenciado e Mestre em Administração de empresas pela Universidade de Bocconi de Milão, Itália; Mestre e Doutor em estudos latinoamericanos pela UNAM, México. Professor e pesquisador da Universidade Iberoamericana León, México; Publicou livros e artigos sobre o culto da morte e a guerra às drogas, a cooperação internacional no Haiti e seus paradoxos. Twitter: @FabrizioLorusso

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Revista organizada, desde 1991, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, com o objetivo de divulgar intervenções interdisciplinares e inovadoras.

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