A Crise Sanitária da COVID-19, Pandemia e Calamidade: o direito ao levantamento dos valores do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)

Por Ana Luisa de Souza Correia de Melo Palmisciano, Daniele Gabrich Gueiros, Maria Julia Ribeiro Mendes de Oliveira e Rafael Lopes

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Introdução

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi instituído pela lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, sendo alterado pela lei nº 8.036, de maio de 1990, e caracteriza-se por recolhimentos de valores mensais pelo empregador, em percentual especificado, realizados em uma conta vinculada ao respectivo trabalhador ou trabalhadora, podendo ser sacado em situações específicas, previstas em lei [1]. Além de poupança para quem trabalha, constitui fundo destinado a políticas públicas de saneamento básico, infra-estrutura urbana e moradia popular.

Originalmente constituiu-se como flexibilização do contrato de emprego e, posteriormente, direito fundamental à proteção em face da dispensa arbitrária ou sem justa causa (art. 7º, I e III da CRFB/88 e art. 10, I do ADCT). Até a instituição da Lei 5.107/66 vigorava o regime da estabilidade decenal, previsto na CLT; vivenciamos um duplo regime normativo a partir da referida lei, mas nas práticas contratuais trabalhistas, o FGTS veio se tornando a única “opção” das trabalhadoras e trabalhadores, sendo universalizado pela Constituição de 1988.

Algumas controvérsias foram debatidas no campo jurídico envolvendo o FGTS, vale lembrar do tempo de prescrição da pretensão aos depósitos não realizados pelo empregador, inicialmente fixado em trinta anos e que foi restringido para cinco anos por decisão do Supremo Tribunal Federal, (ARE) 709212 (Tema 608) [2]. Após a reforma trabalhista de 2017, a fiscalização do cumprimento dos depósitos do FGTS foi dificultada em razão da alteração do art. 477 da CLT — um retrocesso no desenho normativo anterior. A verificação pelo extinto Ministério do Trabalho ou pelos sindicatos (defensor público e juiz de paz eram outras possibilidades, contudo sem a mesma capacidade institucional para fins da necessária fiscalização) das parcelas e da documentação referente à terminação do contrato para o empregado com mais de um ano de tempo de serviço deixou de ser obrigatória [3].

A crise sanitária decorrente do COVID-19 (coronavírus) vem gerando impactos em diferentes dimensões da vida, particularmente nas relações de trabalho, um período de acentuação das inseguranças jurídicas que cercam tais relações tanto no plano individual quanto no coletivo. Este artigo tem por objeto um olhar inicial sobre julgados do Tribunal regional do Trabalho da 1ª Região (TRT1, Rio de Janeiro), e a análise preliminar dos limites e possibilidades da liberação dos depósitos do FGTS em casos de calamidade pública, especificamente no caso contemporâneo da pandemia.

Pandemia e FGTS. COVID-19: Limites e possibilidades normativas de acesso de trabalhadores e trabalhadores aos valores de sua conta vinculada

Os valores do FGTS podem ser sacados em diversas hipóteses, tipificadas mais especificamente pelo art. 20 da Lei nº 8.036 de 1990 [4]. Uma delas consiste na necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, sob as condições de o trabalhador ser residente na área atingida em situação de calamidade pública, sendo reconhecida pelo Governo Federal; a solicitação para movimentação da conta deverá ser requerida em até 90 dias da publicação da situação de calamidade pública [5]; e sendo o valor máximo para o saque na situação descrita de R$6.220,00 (seis mil duzentos e vinte reais), conforme regulamentação pelo art. 4º do Decreto nº 5.113 de 2004 [6].

O art. 2º do supracitado Decreto estabelece as hipóteses em que resta configurado o desastre natural de que trata o art. 20 da Lei nº 8.036/90. Diante da redação do dispositivo legal, diferentes interpretações vêm sendo construídas no campo jurídico sobre a amplitude dos sentidos da norma. Do mesmo modo, as controvérsias acabam movimentando também o processo do trabalho por questões como competência material e o meio processual adequado à postulação da demanda.

Nesta perspectiva, realizamos levantamento de julgados na biblioteca digital do TRT1 [7], por meio da busca de jurisprudência com as palavras chaves: “COVID-19 e FGTS”, no ano de 2020 (com início em 01/01/2020), incluindo acórdãos e sentenças, tendo sido encontrados 21 (vinte e uma) decisões.

Dos julgados analisados, treze enfrentaram a questão da competência, destes, oito interpretam que a competência material é da Justiça do Trabalho. Em contrapartida, cinco decisões interpretaram pela incompetência absoluta da Justiça do Trabalho em se tratando da matéria. Neste mesmo sentido, digno de nota é a interpretação da Procuradora do Trabalho Inês Pedrosa, expressa em pareceres proferidos em agravos regimentais no TRT1, considerando que a competência é da Justiça Federal, entre tantos (cf. 0101610–61.2020.5.01.0000, decisão monocrática da Relatora Desembargadora Nuria de Andrade Peris, 4/6/2020). As demais decisões não problematizaram a competência da Justiça do Trabalho.

Quanto ao mérito da pretensão ao levantamento dos depósitos dos valores das contas vinculadas pelo fato da pandemia, sete das decisões limitaram a possibilidade de liberação ao autorizado por meio da MP 946/2020 (R$ 1.045,00). Quatro das decisões analisadas autorizaram a liberação do FGTS aos trabalhadores e trabalhadoras, no limite de R$ 6.220,00 (seis mil duzentos e vinte reais). Foi encontrada ainda uma decisão de primeiro grau, que autorizou a liberação da totalidade dos valores depositados (processo 0100211–60–2020.0561, Juíza Fernanda Stipp, 1ª Vara do Trabalho de Maricá-RJ. DOU 04/05/2020).

Quanto ao procedimento, duas decisões interpretaram pela necessidade de prévia provocação da Caixa Econômica Federal (CEF) pela parte autora, antes do ingresso da ação perante a Justiça do Trabalho, considerando que a ausência desta provocação da CEF, com comprovação de “resistência injustificada por parte deste órgão”, configuraria a carência de ação por “falta de necessidade da jurisdição” (decisão de 1º grau, proc. 0100311–70.2020.5.01.0284, DOU 01/06/2020, Juíza Raquel Pereira de Farias Moreira, 4ª Vara do Trabalho de Campos dos Goytacazes-RJ, DOU 1/6/2020).

Por último, duas decisões afirmaram que o autor carecia do interesse de agir sob o argumento de que o artigo 20 da Lei 8.036/90 demanda prévia atuação do poder executivo para estabelecer os parâmetros do saque (decisões de 1º grau, proc.0100315–61.2020.5.01.0073, dependência 0100315–61.2020.5.01.0073, Juiz Epilogo Pinto de Medeiros Baptista, 73ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, DOU 04/05/2020).

O levantamento preliminar dos julgados apontou para divergências e interpretações controvertidas a respeito dos diferentes aspectos materiais, processuais e procedimentais acerca da matéria, não sendo ainda possível prever ou apontar uma orientação uniforme e convergente a curto prazo da jurisprudência no TRT1.

Em nossas reflexões em grupo, em aulas presenciais e por videoconferências, estudos dirigidos, rodas de conversas, com o pressuposto de que o conflito faz parte da vida e as diferentes visões de mundo, os debates, são próprios do ambiente democrático, sistematizamos as seguintes considerações iniciais:

No que tange a competência para autorizar esses saques na conta vinculada do FGTS, entendemos que a competência é da Justiça do Trabalho, por força da redação do art. 114 da CRFB, dada pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, inciso IX, que diz que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. No mesmo sentido, o Tribunal Superior do Trabalho já decidiu pela competência da justiça do trabalho (cf. RR: 1321820165230071, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 11/04/2018, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 13/04/2018). Além disso, entendemos que o pedido de expedição de alvará para liberação dos depósitos do FGTS, procedimento de jurisdição voluntária, é o meio processual adequado para postular o direito.

Quanto ao direito à liberação dos valores do FGTS, entre os que interpretam de forma ampliativa o sentido do diploma legal supracitado, a Professora de Direito do Trabalho da PUC-Rio e Faculdade Nacional de Direito — UFRJ, Ana Luísa Palmisciano, expressou entendimento de que o valor limitado pela MP nº 946 não é capaz de suprir as necessidades dos trabalhadores e também não abrange as atuais disposições legislativas que permitem o saque em sua integralidade, inclusive em casos de motivos de força maior e situação de calamidade pública e por isso, é necessário que seja autorizado o saque imediato do valor em sua integralidade [8]. Para a professora, o rol do artigo 2º do referido diploma legal é exemplificativo. No mesmo sentido é o entendimento de Júlio Bandeira de Melo Arce, juiz da 01º vara do Trabalho de Manaus (Processo nº 0000358–33.2020.5.11.0001, TRT11, DOU29/04/2020).

Não há como esperar que o legislador preveja todas as situações fáticas de desastre natural capazes de motivar o direito à liberação do FGTS, sendo essencial que se faça uma interpretação de acordo com os fins sociais a que a norma se dirige, abarcando também a hipótese de pandemia, em respeito aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade stricto sensu, haja vista ser indubitável o estado de calamidade pública, reconhecida por meio do Decreto legislativo nº 6 de 2020, no dia 20 de março deste ano.

Com o claro fim de limitar o valor a ser disponibilizado aos trabalhadores e trabalhadoras, foi editada a Medida Provisória, MP, nº 946 de 2020 autorizando o saque até o limite de R$ 1.045,00 (mil e quarenta e cinco reais) (art. 6º) ficando disponível até 31 de dezembro de 2020.

Todavia, consideramos já existir norma para o caso enfrentado em questão, conforme exposto, sendo desnecessária a edição da MP para fins de regulamentação da liberação dos valores do FGTS. Isso porque a redação do artigo 62, §1º, IV da CRFB veda a edição de medidas provisórias sobre matéria já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional. Mas não só: a regra anteriormente existente caracteriza-se por ser mais favorável ao trabalhador, porquanto prevê um limite para saque de recursos superior ao estabelecido na MP. No âmbito do direito trabalhista, permitir a aplicação de regra menos favorável, implica em violação diretriz de progressividade na conquista de direitos (art. 7º caput), além da vedação do retrocesso, estabelecida pela Constituição (art. 4º. II e 5º, §2º e 3º, art. 60, §4º (REIS, 2010, p. 143–152).

Conclusão

Diante da situação extraordinária que se encontra o país, na qual muitos brasileiros e brasileiras passam por dificuldades por conta da pandemia, entendemos que a liberação integral do saque do FGTS seria uma forma de atenuar a crise econômica que assola inúmeras famílias. Os tribunais trabalhistas vem interpretando pela possibilidade de liberação dos depósito para este fim em alguns julgados, como verificado no levantamento preliminar, restando controvertidas questões como o limite de valor autorizado. Consideramos que o limite de valor fixado pela MP nº 946 não deve ser aplicado, porquanto além de ser norma menos favorável, não atende efetivamente as necessidades dos mais vulneráveis.

[1] Artigo 20 da lei 8036/1990

[2] O STF declarou a inconstitucionalidade do art. 23, § 5º da lei 8.036/1990 e do art. 55 do Decreto 99.684/1990 (prescrição trintenária). Julgamento de mérito de tema com repercussão geral em 13/11/2014, Relator Ministro Gilmar Mendes, vencidos a Ministra Rosa Weber e o Ministro Teori Zavascki.

[3] A assistência do sindicato nas homologações foi qualificada pelo Senador Relator do projeto de lei da reforma trabalhista como tarefa menor, “meramente burocrática”. A desimportância atribuída ao recém-desempregado aponta em sentido contrário à desmercadorização do trabalho. A quitação anual de parcelas (art. 507-C da CLT), para ser considerada seriamente uma possibilidade de fiscalização (portanto, para além do escopo de conferir maior segurança jurídica aos patrões) teria por pressuposto a contratação de um conjunto de profissionais pelos sindicatos, como contadores, advogados e, em alguns casos, médicos e engenheiros do trabalho.

[4] Dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, e dá outras providências.

[5] Artigo 20, inciso XVI da lei 8.036 de 1990.

[6] Regulamenta o art. 20, inciso XVI, da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço — FGTS.

[7] Disponível em:https://bibliotecadigital.trt1.jus.br/jspui/handle/1001/1978/simple-search?query=covid-19+fgts&sort_by=score&order=desc&location=1001/1978&rpp=10&etal=0&filtername=dateIssued&filterquery=%5b2010+TO+2020%5d&filtertype=equals. Acesso em 11/07/2020.

[8] PALMISCIANO. Ana Luisa. Parte 7: Série sobre os direitos dos trabalhadores em tempos de Covid19. Disponível em https://direito.ufrj.br/todos-os-videos/. Acesso em 03/07/2020.

Referências

BIBLIOTECA DIGITAL TRT1. Página de Busca. Rio de Janeiro, TRT/RJ, [s.d]. Disponível em: https://bibliotecadigital.trt1.jus.br/jspui/handle/1001/1978/simple-search?query=covid-19+fgts&sort_by=score&order=desc&location=1001/1978&rpp=10&etal=0&filtername=dateIssued&filterquery=%5b2010+TO+2020%5d&filtertype=equals. Acesso em 11/07/2020.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores. 18. ed. São Paulo: LTrEditora, 2019.

FUNDO DE GARANTIA DO TEMPO DE SERVIÇO (FGTS). O que é o FGTS. Brasília, DF: Caixa Econômica Federal, [s.d]. Disponível em http://www.fgts.gov.br/Pages/sou-trabalhador/o-que.aspx#:~:text=O%20Fundo%20de%20Garantia%20do,vinculada%20ao%20contrato%20de%20trabalho. Acesso em: 08/07/2020.

PALMISCIANO, Ana Luisa. Parte 7: Série sobre os direitos dos trabalhadores em tempos de Covid19. Canal FDN UFRJ, 11 mai. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=63Fu5OepuGc&feature=emb_title.Acesso em 03/07/2020.

REIS, Daniela Muradas. O Princípio da vedação do Retrocesso no Direito do Trabalho. São Paulo: LTrEditora, 2010.

SANT`ANNA, Patrícia Pereira de. Saque integral do FGTS em tempos de calamidade pública. Amantra 12, 22 abr. 2020. Disponível em:https://www.amatra12.org.br/doutrina.php?id=67. Acesso em: 08/07/2020.

SILVA, Leila Santiago Custódio da. Do surgimento do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço como instituto jurídico no ordenamento jurídico brasileiro. Conteúdo Jurídico, 02 mai. 2014. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39097/do-surgimento-do-fundo-de-garantia-de-tempo-de-servico-como-instituto-juridico-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 08/07/2020.

Sobre os autores

Ana Luisa de Souza Correia de Melo Palmisciano é advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-Rio e da UFRJ, membra do CIRT/UFRJ, e da Comissão de Direitos Humanos da OABRJ

Daniele Gabrich Gueiros é advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-Rio e da UFRJ, membra do CIRT/UFRJ, e da Comissão de Direitos Humanos da OABRJ

Maria Julia Ribeiro Mendes de Oliveira é estudante de Direito da PUC-Rio, monitora da disciplina Escritório Modelo de Advocacia II — Processo do Trabalho.

Rafael Lopes é estudante de Direito da PUC-Rio, monitor da disciplina Escritório Modelo de Advocacia II — Processo do Trabalho.

O blog da Revista Direito, Estado e Sociedade publica textos de autores convidados. As opiniões expressas nesses posts não representam, necessariamente, a opinião do periódico e de sua equipe editorial.

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Revista Direito, Estado e Sociedade

Revista organizada, desde 1991, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, com o objetivo de divulgar intervenções interdisciplinares e inovadoras.